Tudo ia bem num belo verão de 2002 em Belém do Pará. Para ser mais exato, era mês de junho e as comidas típicas da quadra junina já anunciavam seus olores pelas ruas e esquinas da cidade. Eu morava sozinho em um pequeno apartamento de dois andares; havia na parte de baixo uma sala com muitos livros em prateleiras, discos, instrumentos musicais e ainda uma decoração com flechas e artefatos indígenas, que confundia a cabeça da minha diarista que me ouviu dizer que minha mãe era de origem libanesa, mas a presença das flechas a fazia pensar que era uma etnia indígena localizada nesse tal de Líbano.
Morar só tem seus encantos e desencantos. Ninguém espera você chegar e tudo o que se coloca em um determinado lugar, na volta, está lá o objeto. Isso é fantástico (inclusive toalhas molhadas raramente esquecidas em cima da cama).
Morar sozinho é uma descoberta. Descoberta de algumas coisas se movem sozinhas e outras emitem sons e o pior é não saber nem a origem e nem o que está emitindo aquele som. Pode ser qualquer coisa, mas, em geral não é nadinha. Só entende quem mora ou já morou só.
A pessoa precisa de alguém para dar apoio nos afazeres da casa como cuidar, limpar e sobretudo cozinhar. Para quem teve uma mãe libanesa com mãos de fada na cozinha, fazer comida é uma responsabilidade enorme. Para agradar uma pessoa assim, no caso eu, é necessário um estágio probatório rigoroso. Foi assim com a doce e destemida moça que o porteiro do prédio indicou ao saber de minha discreta e desesperada procura por alguém. Já tinha emagrecido quase seis quilos. Ah, outra coisa para quem teve família grande é comer sozinho; é muito triste; a pessoa olha para a comida e dá impressão de que ela está com pena de você; ainda mais quando é sopa. Parece um lago esquecido num lúgubre poente, infinitamente parado na solidão das horas. Legumes imersos parecem algas num pântano abandonado de onde a qualquer momento surgirá, do fundo, um ser monstruoso para abocanhar sua alma. Valei-me Nossa Senhora!
Na tentativa de afastar esses espíritos obsessores da solidão, chamei a moça de uns vinte e poucos anos para trabalhar como diarista. Muito correta e disposta, não tinha muita experiência, porém, vontade de aprender era o seu ponto forte, bem como a honestidade. Não sabia fazer um feijão muito bom, mas o escondidinho de charque, ah! esse era pior ainda. Mas tudo bem.
Um belo dia, após meses de trabalho como diarista, eu acordei e lembrei que havia sonhado que estava numa roda gigante imensa num parque de diversões na Rússia e ao acordar senti um desejo incontrolável de comer língua ao molho madeira com arroz branco ao alho e óleo. Não sei até hoje qual é a relação do sonho na Rússia com a língua, mas foi assim como disse.
Antes de sair para dar aulas no Conservatório, a moça já havia chegado, o rosto breado do sol da manhã das oito que já é quente em Belém, aliás: qual é a hora do dia que não é assim nesta cidade? Ainda tomando o café com tapioca e bolo de maracujá, disse em alto e bom som:
– Ah, eu hoje estou com muita vontade de comer uma língua ao molho madeira com arroz branco! (Eu já havia, cedo, comprado uma língua no mercado e já estava na geladeira)
A moça respondeu:
– Seu Salomão eu não sei fazer essas comidas elegantes assim!
E respondi:
– Mas desde quando língua é elegante? É simples! Basta tirar a pontinha, por para ferver em 2 litros de água com os temperos e deixar aos poucos ir cozinhando até o ponto certo.
Ela me olhou só com um olho, fechando o outro quase como se tivesse pingado limão e não disse nada. Pra mim ela tinha entendido, até porque nenhum mistério pairava sobre a minha explicação didaticamente cuidadosa. Fui trabalhar como se fosse um príncipe que espera uma festa, um baile. Só pensava na língua. Eu olhava os alunos e só via a tal da língua na minha frente.
Quando deu 14 horas, eu retornei para casa com um sorriso inquestionavelmente feliz no rosto. Estava tão feliz que até dei cinquenta reais para o flanelinha apelidado de Disco Voador, que tinha essa alcunha por ser chato e ninguém acreditar nele. Disco não entendeu nadinha e ainda colocou a nota aberta contra a luz do sol para ver se não era falsa. Eu vi e nem fiquei com raiva. Estava muito feliz e a vida me sorria.
Cheguei em casa. Queria sentir o aroma real linguístico invadir minhas narinas e orvalhar o céu da minha boca. Me espantei com a diarista encostada no caixilho e com a planta do pé apoiada no joelho formando um número quatro. Me olhava com um ar que misturava a incredulidade, espanto e porque não dizer um pouco de chateação.
Perguntei:
– Que tal? E a nossa língua ao molho madeira?
Ela responde:
– Essa língua não vai dar nem pra uma criança comer!
Eu disse a ela:
– Mas era uma língua grande parecia de um Dinossauro!
Chateada, ela me levou até o fogão. Tinha uma panela grande fervendo tanto, que a tampa dançava e dentro com os tais dois litros de água.
– Olhe ai! (Disse a moça com um olhar indignado)
Olhei para a panela e, no meio daquela água toda fervente, lá estava, de um lado para o outro na enorme panela, somente a pontinha da língua fervendo.
Eu falei:
– O que é isso?
Ela prontamente respondeu com as mãos espalmadas para cima:
– O senhor mandou tirar a pontinha e por para ferver! Está aí!
Quase eu desmaio de fome e de raiva. Ela levou ao pé da letra o que falei. Ah que saudade fiquei da minha língua desejada que foi engolida pelo sentido lato de outra língua. A nossa língua brasileira!
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