Nos últimos dias nuvens escuras pairaram sobre a cena literária brasileira, lançando sombras sobre valores que devem estar sempre à luz do sol, ao ar livre, com visibilidade plena e ilimitada; princípios basilares que não podem mais ser contestados, inclusive pelos saudosos de plantão, que vivem a rememorar tempos idos cujo retorno já não cabe sequer cogitar.
Durante o regime militar era rotineiro que escritores, poetas e compositores submetessem suas obras aos censores da polícia de costumes, previamente à publicação, para que estes, usualmente sem conhecimento de causa, deliberassem e decidissem a que conteúdos os brasileiros poderiam ter acesso. Hoje, felizmente, isso é passado. Além de ilegal e ilegítimo, isso se tornou cafona!
Sejamos simpáticos a ideologias de esquerda, direita ou centro; tenhamos apreço por partidos ou líderes políticos de diferentes matizes – liberais, progressistas ou conservadores; pensemos as questões econômicas sob a égide do livre mercado ou do intervencionismo estatal; uma coisa é certa e induvidosa em qualquer hipótese: não podemos abrir mão das prerrogativas e liberdades individuais que a Constituição Federal consagra e protege como cláusulas pétreas.
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, sendo livres a manifestação do pensamento e a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, cabendo à lei punir qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais, sobretudo as motivadas por questões de gênero, raça e religião.
Isso está no cerne da nossa organização enquanto sociedade, é essencial e indispensável, condição sine qua non da própria existência da nação civilizada, inobstante ainda haja um longo caminho até o pleno e paritário exercício desses direitos, até o livre e efetivo gozo dessas liberdades.
Em sendo assim, inadmissíveis os ataques perpetrados contra a literatura brasileira – e por extensão a cultura do país -, mais especificamente contra os livros escritos pelo carioca Jefferson Tenório – “O avesso da pele” – e pelo paraense Airton Souza – “Outono de carne estranha”, ambos vilipendiados e censurados sob justificativas estapafúrdias e anacrônicas que guardam em si sementes de algo ainda mais nocivo que a própria censura: a discriminação motivada por questões de raça e identidade de gênero. Em duas palavras menos dóceis: racismo e homofobia.
“O avesso da pele” foi censurado pelas Secretarias de Educação dos Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná sob a alegação de conter palavreado chulo e de baixo calão, impróprio para menores de 18 anos. “Outono de carne estranha”, por seu turno, foi considerando moralmente ofensivo por pessoas ligadas ao Prêmio SESC de Literatura, motivando ações questionáveis na estrutura da instituição, entre as quais demissões e, pasme-se, a criação de uma comissão encarregada de avaliar os aspectos morais das obras inscritas na famosa premiação nacional (!?!?!?).
Essas ações soam no mínimo desafinadas, destoantes, eis que “O avesso da pele” havia sido avaliado anteriormente pelo Ministério da Educação e inserido no Plano Nacional do Livro e do Material Didático; enquanto que “Outono de carne estranha” havia sido laureado com o Prêmio Sesc de Literatura na categoria romance. Insólito, portanto, que a partir de leituras isoladas e evidentemente equivocadas as obras sejam atacadas como foram, sob escusas pueris, por supostos defensores da moral e dos bons costumes.
Há realmente palavras fortes nas duas obras, termos que normalmente são considerados “palavrões”, como diziam os mais velhos, ou “nomes feios” como diziam pais e mães, avôs e avós ocupados com a educação de crianças “desbocadas”. Mas e daí? Qual o problema? Elas não estão ali à toa, gratuitamente, apenas para melindrar suscetibilidades extremas. Muito ao contrário, estão contextualizadas, inseridas coerentemente nas tramas descritas, partes de uma realidade inegável e conjuntural, ou alguém acha que numa conversa entre garimpeiros na Serra Pelada dos anos 80, ou entre jovens que comentam seus namoros e suas primeiras relações sexuais, um pênis, uma vagina e um ânus seriam assim designados, com tanto primor científico em atenção aos tratados de anatomia?
Os nomes populares que o vocabulário nacional dá a algumas partes do corpo podem soar vulgares e ofensivos para alguns leitores, sem dúvida. Aceitar essa verdade também é um ato de respeito aos direitos e liberdades individuais. Podem existir os castos e puritanos? É óbvio que sim. Todos podem existir, e cada um pode pensar como quiser. O que não se admite é que alguém, com amparo nas suas próprias conclusões, se julgue capaz de demonizar uma obra artística, proscrevendo-a aos confins do inferno, onde queimará juntamente com os infames e hereges que ousaram lê-la.
O erotismo na literatura é tão antigo quanto a Sé de Braga, e o vocabulário utilizado para dar o tom sempre variou de autor para autor, uns mais discretos e subliminares, outros mais explícitos e carnais. Basta lembrar do Marquês de Sade em “120 dias de Sodoma”, de D. H. Lawrence em “O amante de Lady Chatterley”, Henry Miller em “Trópico do Câncer” ou do nosso João Ubaldo Ribeiro em “A Casa dos Budas Ditosos”, sem deixar de citar também o italiano Milo Manara e seus insuperáveis quadrinhos picantes e luxuriosos.
Por aqui valeria citar também o Mestre Edyr Augusto, em cujos livros sexo e violência são temas explorados sem pudores ou meias palavras, em carne recém saída do abatedouro. Quem já leu “Moscow”, “Pssica” ou “BelHell” sabe bem a que me refiro. Mas atenção! Não tentem censurar o Edyr! Nós, seus fãs incondicionais, estamos prontos para levar às ruas mais uma Cabanagem.
Os livros estão quietos, fechados e reservados. São discretos por natureza. Só os abre e lê quem quer. Que os que não querem os (e nos) deixem em paz!
Viva a literatura, abaixo a censura!
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