Vocês não têm vergonha dos tópicos das grandes discussões que estão à tona no Brasil, neste momento? Porque eu tenho, e muita. Como é que, em pleno século XXI, o maior debate em uma eleição para presidente da república gira em torno de religião? Pior, em torno de acusações satanistas. E isto é realmente algo que representa grande risco de perda de votos onde, antes de mais nada, o Estado é laico.
Um dos jargões nacionais mais famosos é de que Deus é brasileiro, mas certamente não é este Deus de ódio, punitivo, segregador, elitista, armamentista que tantos defendem. E, sejamos reais, nem o da Bíblia (ou da Torah ou do Alcorão) na mais pacífica e benéfica das interpretações, já que foi completamente imposto aos povos originais pelos colonizadores como ferramenta de dominação. Basta ler Pero Vaz de Caminha, em sua célebre carta a D. Manuel I, para não restarem dúvidas: “E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.”
Esta “causa”, como bem sabemos, foi a exploração das nossas terras e da nossa gente por países como Portugal e Espanha, que simplesmente se auto decretaram com uma autoridade divina que autorizava a dividir terras ocupadas e, nelas, executarem uma invasão grotesca, um genocídio e ecocídio, que deixou marcas gravíssimas ainda tão presentes na sociedade atual. Uma dessas marcas, sem dúvida, é a dominação através da fé, tão bem executada pelas igrejas – principalmente as evangélicas – que faz delas um grande negócio econômico e político.
É surreal que mais de quinhentos anos depois o nosso processo de descolonização ainda seja tão restrito a grupos ativistas e ao mundo acadêmico. Não tenho conhecimento sobre os livros escolares de história atuais, mas eu mesma, há não tanto tempo atrás, ainda estudei em livros que deixavam subentendido que, nós, os privilegiados com acesso à educação, éramos os descendentes dos portugueses (até onde eu saiba, na mistureba que é meu sangue amazônico não têm gotas portuguesas não) e que os indígenas e africanos escravizados eram “os outros”, como as pessoas de pele mais escura são tratadas até hoje na sociedade – quando, na verdade, exatamente todos nós, pobres, classe-média, ricos e trilhardários, somos mestiços, caboclos frutos de uma miscigenação forçada que transformou Tupã, Nhanderu, os caruanas, os orixás, todos os Encantados em demônios.
Não acredito que caiba aos processos descolonizadores que merecemos devolver na mesma moeda à fé cristã o que fizeram com os Deuses brasileiros e africanos, entretanto, como povo, devemos sim compreender profundamente que espiritualidade e religiosidade são escolhas pessoais e que, de forma alguma, podem ser consideradas medidas para o caráter e a competência de alguém – principalmente para os representantes populares nos âmbitos legislativo e executivo. Nós merecemos, depois da exploração secular de nossas terras e de nossas almas, discutir numa eleição presidencial propostas que tirem a nossa gente da linha da fome, que garantam que todas as nossas crianças, sem exceção, frequentem a escola, que tenham um ensino de qualidade que desenvolva suas habilidades técnicas, artísticas, esportivas e intelectuais, o pensamento crítico e a consciência de classe, que sejam vacinadas que não sejam abusadas e exploradas sexualmente e moralmente; que tragam aos adultos dignidade de um trabalho com direitos respeitados, de terem um teto para viver, comida na mesa, e poderem proporcionar lazer para toda a família. Isto sim é essencial para que sustentemos a nossa democracia. Já a fé religiosa só pode ser associada ao voto em uma única comparação: ela é pessoal, secreta e intransferível.
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