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O dia de hoje é marcado na história do Pará por movimentos de resistência indígena, negra e mestiça à opressão portuguesa, durante o período colonial. Em 7 de janeiro de 1619 os Tupinambá, primeiros habitantes da região, revoltados pela escravidão a que eram submetidos, atacaram o Forte do Presépio. Para sufocar o levante, Francisco Caldeira Castelo Branco, o fundador de Belém, determinou a prisão e morte do cacique Guaimiaba.

Em 7 de janeiro de 1835, mais de 200 anos depois, a tomada de Belém marca a Cabanagem. Na noite do Dia de Reis de 1835, a população saiu às ruas a fim de assistir a uma peça no Teatro Providência. O presidente da Província, Lobo de Souza, estava na plateia. Enquanto isso, na surdina, os cabanos começaram a ocupar pontos estratégicos da cidade, com armas nas mãos. A madrugada foi intensa: o palácio do governo nem chegou a oferecer resistência significativa, no quartel houve adesão da tropa e o prédio da Maçonaria logo foi depredado. Alcançado em um terreno baldio quando tentava ir da casa da amante ao palácio, o presidente Lobo de Souza, o Malhado, foi abatido na escadaria do Palácio do Governo, cujo prédio hoje abriga o Museu do Estado do Pará (MEP), em frente à Praça Dom Pedro II, onde os cabanos acampavam e se reuniam em assembleia com as roupas vermelhadas tingidas com casca de murici.

Félix Clemente Malcher, senhor de engenho e fazendeiro, se elegeu primeiro governador cabano, tendo Francisco Vinagre como comandante das armas.

Nas eleições de 1835, a primeira da Assembleia Provincial, precursora da atual Assembleia Legislativa, foi eleito deputado Jacinto Francisco Lopes, oficial tenente do Corpo de Milícias, que não tomou posse devido à eclosão da Cabanagem, mas teve participação ativa na insurreição, sob a alcunha “Jacinto Pororoca”. Foi preso e morreu nos porões da corveta defensora na baía do Guajará, junto com o padre Felipe da Costa Teixeira, também deputado eleito, e mais trezentos presos, por ordem do general José Soares de Souza d’Andréa, nomeado para a presidência da Província do Pará logo depois que os cabanos abandonaram a capital e rumaram para o interior.

No lado da resistência, Ângelo Custódio Corrêa, deputado provincial eleito – e o mais votado -, após a execução do presidente Bernardo Lobo de Souza instaurou um governo paralelo em Cametá, que durou onze meses, e ali coordenou a reação contra os insurgentes. Por sua vez, o também deputado provincial eleito Raimundo Sanches de Brito, junto com seu irmão Padre Antonio Manuel Sanches de Brito, organizou a resistência anti-cabana na região do Baixo Amazonas.

O movimento, para além das reivindicações por melhores condições de vida, trouxe à tona formas de exploração daquele tempo. Lembrar da Cabanagem significa valorizar a identidade e simbologia do povo paraense, porque ela evidenciou a escravidão, as questões de gênero e a identidade regional. É preciso manter acesa a memória de tantos que lutaram e deram suas vidas nas ruas, rios e igarapés do Pará.

“Povo sem história é povo sem alma. E um povo sem alma não é digno de si mesmo”, dizia o saudoso jornalista, dramaturgo, pesquisador e escritor Nazareno Tourinho, extraordinária referência cultural parauara, que embora esquerdista gostava de citar uma frase emblemática do político Plínio Salgado, de extrema direita, que considerava genial: “Se és incapaz de sonhar, nasceste morto. Se sonhas e és incapaz de transformar o teu sonho em realidade, és um inútil. Se sonhas e transformas o teu sonho em realidade, então serás grande na tua pátria e tua pátria será grande em ti.”

O líder Eduardo Angelim recusou os cargos que lhe foram oferecidos. Mas não tardou para que o moderado Malcher e o extremado Vinagre se desentendessem. Angelim, preso em um navio de guerra durante os embates, foi libertado depois da deposição e morte de Malcher, pelos próprios cabanos, que entregaram o poder ao marechal Manuel Jorge Rodrigues, enviado pela Regência, em 26 de julho. Mas o marechal mandou prender Francisco Vinagre e mais 300 cabanos. Angelim fugiu, então, para o interior, e nova fase cobriu Belém de sangue a partir de 14 de agosto de 1835.

Aos 21 anos, Angelim foi o terceiro governador cabano, depois de Francisco Vinagre. A radicalização do movimento, com Belém sitiada, culminou com o saque e o assassinato da tripulação de um navio inglês, que transportava grande quantidade de material bélico para um comerciante britânico estabelecido em Belém, daí que não demorou para três navios de guerra da marinha inglesa, com bandeira branca hasteada no mastro, aportarem, exigindo o hasteamento da bandeira britânica no lugar da brasileira, a entrega dos criminosos à justiça da Inglaterra e a indenização devida à companhia de navegação. Angelim atribuiu a responsabilidade pelo pagamento e aplicação da justiça ao governo brasileiro, o que foi aceito pelo capitão Strong.

Durante oito meses e dezenove dias os cabanos dominaram Belém, que foi retomada pelas tropas legais em 12 de maio de 1836. Mas a Cabanagem havia se espraiado pelo interior, ao longo do rio Amazonas. Em cinco anos de sangrentos combates, cerca de 40 mil pessoas tombaram. Uma carnificina que ceifou dez por cento da população do Grão Pará e Rio Negro.

A Cabanagem, aos 189 anos, merece ser estudada com ênfase nas escolas parauaras e sua memória preservada. Acontecimento decisivo, histórico, marcante e fundamental para a vida e para a história do Estado do Pará, episódio sangrento no qual escravos, índios e mestiços se uniram à classe média para lutar por seus ideais, verdadeiro genocídio mas período político por demais significativo que teve sucessivos governos, nunca foi devidamente estudado e registrado.

Cametá apoiou o movimento e seus ideais, e se considerou vitoriosa quando foi tomado o poder, em janeiro de 1835, porém, quando os cabanos chegaram ao governo, muita coisa mudou. A partir desse momento a sociedade cametaense se colocou contra os revoltosos. Ângelo Custódio de Correia, filho ilustre de Cametá, foi assassinado por membros da Cabanagem em frente à própria casa, após o casamento da filha. Esse ato marcou a mudança de pensamento do movimento, e por isso Cametá passou a lutar contra os cabanos. Liderados pelo padre Prudêncio, que tinha domínio de estratégias militares, a cidade foi protegida e os revoltosos perseguidos até a morte.

Cametá foi capital legal da Província durante cerca de doze meses, de 15 de maio de 1835 a 13 de maio de 1836. Hoje, a resistência à Cabanagem é lembrada em um grande painel instalado na Praça da Cultura, no centro da cidade. Perto dali, fica o Museu Histórico de Cametá Raimundo Penafort de Sena, que preserva diversos artefatos da época, como moedas, armas, louças e objetos pessoais de alguns personagens desse período. O museu tem mais de duas mil peças que registram momentos importantes da cidade, fundada em 1635 e declarada Patrimônio Histórico Nacional.

O grande ideólogo da Cabanagem, cônego Batista Campos, que também era jornalista e ativista político, se escondeu em um sítio próximo ao vilarejo de São Francisco, no furo do Arrozal, quando fugia das tropas do governo, e ali morrereu no último dia do ano de 1834, por complicações de inflamação de um corte em espinha carnal no queixo.

Barcarena é a única cidade com núcleo urbano que relembra os cidadãos que fizeram parte desse importante momento histórico do Pará. Todas as ruas da Vila dos Cabanos são nominadas com personagens reais que integraram esse movimento, como Antônio Vinagre, Germano Aranha e Domingos Onça.

Em Belém são testemunhas da história o MEP, o Forte do Presépio, a Igreja da Sé, a Praça do Carmo – cenário de combate sanguinário – e vários outros prédios públicos que integram o Complexo Feliz Lusitânia, que compreende o entorno da Praça Frei Caetano Brandão, ao largo da qual estão localizados museus que ocupam os prédios históricos, inclusive o conjunto dos Mercedários e a Estação das Docas, que mantém resquícios do motim São Pedro Nolasco, um dos primeiros a cair com o ataque cabano.

Outras curiosidades históricas: a praia do Chapéu Virado, na Ilha do Mosqueiro, foi palco de sangrenta batalha durante a Cabanagem. Na Vigia, no Trem de Guerra, hoje sede da Câmara dos Vereadores da cidade, as autoridades locais se refugiaram durante a invasão dos cabanos e foram todos mortos, inclusive o pai de Domingos Antonio Raiol, que na época tinha cinco anos e assistiu ao assassinato do próprio pai. Figura extraordinária, ele se tornou escritor, historiador, político, e o Barão de Guajará. Lançou a obra seminal sobre a Cabanagem, “Motins Políticos”, fundou a Academia Paraense de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico do Pará, e foi promotor público, procurador da Fazenda Nacional, deputado na Assembleia Provincial e no Parlamento Nacional, governador de Alagoas, Ceará e São Paulo.

A Cabanagem é retratada nos “Motins Políticos” de Domingos Antônio Raiol de forma bem diferente que em “Cabanagem: epopéia de um povo”, de Carlos Rocque, e segue despertando novas leituras do seu processo.

O jornalista e sociólogo Lúcio Flávio Pinto é autor de várias publicações sobre o tema: (“Cabanagem: o massacre” e “Cabanagem 180 anos: a guerra de um povo”, além de seu blog “Cabanagem”).

 Na obra  “Nova história da Cabanagem; seis teses revisam a insurreição que incendiou o Grão-Pará em 1835”, em linguagem clara e direta e sem perder o rigor científico, o jornalista Sérgio Gusmão revisita o papel e as circunstâncias de personagens como Grenfell, Batista Campos e Félix Malcher na conjuntura cabana, abrindo ainda mais o leque.

A esfinge da Cabanagem permanece à espera de quem a decifre. Os vestígios foram varridos dos livros de História. Nos logradouros parauaras, raras referências. Em Belém, um retrato de Eduardo Angelim desde 1936 no Instituto Histórico e Geográfico do Pará.

Foto: capa de “Em Tempos Cabanos – o Bravo Sangue Amazônico”, segundo livro da trilogia de Antônio Pinheiro Cabral.

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