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Na noite do 30 para o 31 de janeiro de 1918, dezesseis aviões bimotores da classe alemã Gotha, divididos em quatro esquadrilhas, lançaram 14 toneladas de bombas sobre Paris. Esse fato produziu uma paralisia geral nas estratégias de guerra – da I Guerra Mundial, que então acontecia. Na verdade, era uma etapa nova que começava no conflito e que, parecia, daria a vitória aos alemães. E isso ocorria porque a revolução russa, ocorrida três meses antes, teve como efeito mais imediato a saída desse país do conflito, permitindo que a Alemanha se concentrasse na sua fronteira ocidental. Assim, enquanto a Rússia abandonava suas posições na Polônia, Lituânia, Lituânia e Ucrânia, o Reich de Guilherme II se lançava numa imensa operação contra a França e a Inglaterra, entre em março e julho desse ano de 1918.

Era a Ofensiva da Primavera, com suas operações Michael, Georgette, Gneisenau e Blücher-Yorck. No final de março, precisamente no dia 23, Paris voltou a ser duramente bombardeada. Os alemães estreavam uma nova e diabólica arma, o Pariser Kanonen, ou Grosse Bertha, um gigantesco canhão que foi a peça de artilharia mais pesada de todos os tempos, até então. A guerra parecia perdida… Como devem saber, foi nesse momento que o fujão do presidente norte-americano Woodrow Wilson, que enrolou o quanto pôde seus “aliados”, se decidiu a enviar suas tropas para a Europa. Na verdade, todo o sistema de combate aliado precisou se reorganizar. Em abril de 1918 o genial estrategista francês general Foch foi nomeado chefe de armas do conjunto das tropas aliadas e, então, então sim, estas começaram o seu avanço.

Enquanto isso, no Brasil, se o governo permanecera neutro até meados de 1917, setores da intelectualidade local estavam bastante ativos na tarefa de sensibilizar a população para a causa aliada. Antes de tudo, havia a militância artística do jovem compositor francês Darius Milhaud, que, incansavelmente, dava concertos no Rio de Janeiro que se tornavam atos políticos de defesa dos aliados. Em paralelo, o paraense José Veríssimo, um dos intelectuais mais respeitados do período, criou e se tornou presidente da Liga Brasileira pelos Aliados, a LBA, que promoveu uma série de eventos na então capital federal.

Outros intelectuais se engajaram na causa aliada. O compositor Alberto Nepomuceno, muito ativo, não apenas escreveu cartas públicas exigindo que instituições nacionais se manifestassem em apoio aos aliados como também produziu composições inspiradas no conflito, como Oração à pátria, de 1914; Tambores e cornetas, de 1918, com texto de Osório Duque-Estrada; e Saudação à bandeira, de 1919, com texto de Aquino Correia.

A Liga Brasileira pelos Aliados, fundada em 1915, reunia muitos intelectuais e tinha nos seus quadros Graça Aranha, Lauro Sodré e Ruy Barbosa. Em seu nome foram publicados muitos textos nos jornais do país e, também, impressos panfletos com conferências falando sobre “os crimes alemães” e outros assuntos pertinentes.

E tudo isso acabou produzindo um fenômeno sociocultural maior – e pouco conhecido – na história brasileira. Um fenômeno franco-brasileiro, a melhor dizer. Falei logo acima sobre Darius Milhaud, o compositor. Pois bem. Era um personagem muito interessante. Nascido em Marselha, em 1892, veio ao Brasil como professor de francês voluntário em 1917, acompanhando a comitiva do escritor Paul Claudel, nomeado então embaixador da França no país. Tornou-se adido cultural da embaixada francesa e viveu no Rio por dois anos, imergindo na cultura musical local.

Justamente, foi por suas mãos que a tal cultura musical local começou a deixar de ser estigmatizada e a ganhar salões e palcos menos excluídos. Sim, Darius Milhaud contribuiu imensamente para que o maxixe, o lundu e o tango brasileiro deixassem de ser considerados “música de segunda”.

Incansavelmente, ele trouxe para as suas apresentações, nos saraus e reuniões sociais da época, os maxixes de Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá. Tais ritmos ainda eram desprezados pelas elites cariocas. Com Milhaud, passaram a ser aceitos – tanta foi a sua insistência em tocar maxixes em seus concertos e nas festas da embaixada francesa (grande defensora da cultura popular brasileira). Por sinal, anos mais tarde, entre 1922 e 1924, ele faria o mesmo com o jazz, quando viveu nos Estados Unidos, se apaixonou pelo gênero e contribuiu grandemente para a superação da sua estigmatização. Darius Milhaud seguiu século XX adentro tocando, pela Europa e pelo mundo, jazz e maxixes – juntamente com sua obra erudita, cheia de politonalidades e de aberturas para a alteridade.

Ah, mas também cabe dizer que houve uma famosa defensora do maxixe, no Brasil, antes dele: a mítica primeira-dama do país, a Nair Teffé, esposa do Marechal de Ferro, Hermes da Fonseca. Na verdade, ela trouxe ousou trazer o maxixe para o próprio Palácio do Catete, entnao sede da presidência da República.

Por sinal, cabe lembrar que Nair de Teffé executou, ao violão, em pleno Catete e para horror-e-deleite da elite carioca, bem como de todo o corpo diplomático em serviço no país, acompanhada por seu convidado especial, Cattulo da Paixão Cearense, o Corta-Jaca, a composição de1895 de Chiquinha Gonzaga e de Machado Careca. Isso ocorreu na festa de despedida do casal presidencial do mandato, no ano de 1914. Os jornais cariocas repercutiram, com entusiasmo, o novo “escândalo” da primeira-dama (ela adorava produzir escândalos e posso dizer que nunca houve uma primeira-dama como Nair de Teffé) e esse episódio mostra que o Rio de Janeiro já era moderno antes da Semana de Arte Moderna de 1922.

E já que mencionamos 1914, retornemos à I Guerra, que iniciou nesse ano.

Segunda-feira passada, 11 de Novembro, fez 106 anos do armistício da I Guerra Mundial. Quando eu morava na França aprendi a ter grande respeito por essa data, que impregna o imaginário europeu como nenhuma outra, sendo muito mais importante, do ponto de vista afetivo, do que o término da II Guerra ou de outras datas nacionais, com exceção óbvia do 14 de Julho. O fato complementar de que meu filho faça aniversário nesse dia – coisa que enchia de admiração seus amiguinhos de lá, naqueles tempos (afinal, ele era um brasileiro) – acabava se tornando uma narrativa sempre presente. Outro fato complementar é que minha filha estudava no Liceu Darius Milhaud – esse compositor genial que tanto admiro. Coincidências. No 11 de Novembro, como todos, reservávamos uma parte do dia para ir reverenciar a memória dos incontáveis mortos dessa guerra. Um pouco para ver e vivenciar a importância desse dia, um pouco para ver o que acontecia. No 11 de Novembro centenas de pessoas costumavam fazer uma prece ou colocar flores nos cenotáfios que cada comuna (município) possui, com os nomes das dezenas, centenas ou milhares de mortos dos seus “filhos” falecidos na I Guerra.

Por razões pessoais e afetivas, essa memória era minha, também, e segue sendo, enfim.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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