0

No dia 26 de janeiro de 1990 uma competição de “esqui sobre a grama”, que seria realizada na vila de Mogins, na Suíça, foi anulada por causa… da neve. Na madrugada anterior nevara além do previsto, cobrindo não apenas a pista de grama da competição mas também as casas da vila e o hotel onde estavam os competidores. Isso conforme a notícia n° 261.547/1990 da Agence France Press, que informa também que a população da vila aproveitou o ocorrido para esquiar na neve e o prefeito local lamentou o investimento perdido que sua gestão fizera em prol do turismo local, tanto na construção da pista de grama “de inverno” como na organização da competição.

É impressionante o número de notícias bobas da vida quotidiana que se encontra por aí. Minha curiosidade de vez em quando me leva a elas: ao fait-divers (pronuncia-se fé-divér), como se diz no jornalismo francês. E elas não estão apenas nos jornais, estão por todo lado. Penso, por exemplo, na música “Tereza da Praia”, de Tom Jobim (seu primeiro sucesso) e do paraense Billy Blanco, interpretada por Dick Farney e Lúcio Alves. Na verdade, não exatamente na música, mas no fait-divers que teria levado à sua composição.

Vamos a ele. Foi uma notinha que saiu na coluna “Microfone”, na edição da revista “Radiolândia” publicada na 2ª quinzena de 1953 e vendida nas bancas por 5 cruzeiros. A coluna anunciava, em todas as edições, o seu propósito: “Nesta edição sobre o mundo das ondas faz-se uma pouco de ‘onda’ com todo mundo” (p. 35). A notinha dizia:

“Lutam em silêncio: Nora Ney e Ângela Maria, Linda Batista e Dalva de Oliveira, Neusa Maria e Marion, Lício Alves e Dick Farney, Nelson Gonçalves e Alcides Gerardi”

Só isso, mas a mesma edição da revista trazia uma matéria intitulada “As inimizades no rádio” (que não citava os dois cantores), uma reportagem sobre os irmãos Dick e Cyl Farney e outra sobre a excursão de Lúcio Alves à Argentina. E todo mundo entendeu que os dois – as duas “vozes de travesseiro” da canção brasileira – se odiavam. Isso não era verdade, mas ninguém acreditava, por mais que ambos a desmentissem.

Essa história é banal, mas produziu um clássico: “Tereza da Praia”, justamente. O que se contava era que os dois intérpretes pediram aos compositores uma música que botasse fim ao boato de que eles se odiavam e viviam competindo por tudo. A ideia era uma canção em que dividissem os vocais. E Billy Blanco deu o tom, criando uma letra na qual os dois, justamente, se disputavam em torno de uma moça, a Tereza da Praia:

Lúcio? (Eu)
Arranjei novo amor no Leblon (não diga!)
Que corpo bonito (hum), que pele morena (hum)
Que amor de pequena, amar é tão bom (tão bom)

Oh, Dick? (Sim)
Ela tem um nariz levantado (hum)
Os olhos verdinhos (hunrum) bastante puxados
Cabelo castanho
E uma pinta do lado (aah)

É a minha Teresa da praia
Se ela é tua, é minha também (mas por que?)
O verão passou todo comigo
O inverno, pergunta: Com quem?

Lúcio Alves, mineiro de Cataguases, mudou-se com a família para Vila Isabel, no Rio, aos 7 anos. Aos 9, já participava de todos os programas infantis das rádios cariocas – o Picolino, o Bombonzinho e vários outros. Profissionalizou-se no ano de 1941, ao integrar o conjunto “Os Namorados da Lua”. No ano seguinte os Namorados foram contratados pelo Cassino da Urca para fazer um show que tinha a direção de Ziembinski, o polonês que começava a mudar a história dos palcos brasileiros.

O primeiro single dos Namorados saiu no final de 1942, trazendo duas faixas, “Vestidinho de Yayá” e “Té logo, Sinhá” (Victor 800.031). Lúcio permaneceu no conjunto até 1848, quando iniciou carreira solo e se tornou um dos cantores mais conhecidos do Brasil. Repetia o estilo de Frank Sinatra, enquanto Dick Farney reproduzia o de Bing Crosby. Não por acaso se dizia que eram as duas “vozes de travesseiro” do país – um termo pesado de ironia, como percebem.

Mas como falei sobre Ziembinski, deixem que volte a ele, porque nunca se fala do grande Zimba apenas por alto. Nascido em 1908, cursou a Escola de Arte Dramática do Teatro Municipal de Cracóvia. Entre 1927 e 1929 atuou em mais de vinte papéis, que o levaram ao importante “Teatr Polski” (Teatro Polaco), um dos principais teatros do país, em Varsóvia. A guerra o trouxe ao Brasil para sempre, onde viveu até sua morte, em 1978. Já em 1943 dirigiu a famosa primeira peça de Nelson Rodrigues – até então conhecido apenas como jornalista –, “Vestido de Noiva”.

Essa peça foi um marco no teatro brasileiro, um marco verdadeiramente fundador. E por quê? Primeiramente porque introduziu, na cultura teatral brasileira, a noção de “diretor”, substituindo a de “ensaiador”. Este, embora também com o nome de “diretor”, se incumbia apenas de ensaiar as falas e organizar a movimentação dos personagens em cena. Ziembinski passou a construir a interpretação dos atores, trabalhando também a estrutura cênica – algo fundamental numa peça que tinha três planos superpostos – a realidade, o sonho e o imaginário – com uma iluminação inovadora, que tinha 132 diferentes efeitos de luz.

Bom, dizendo isso, é claro que chegamos a outro gênio: Nelson Rodrigues. “Vestido de Noiva”, de 1943, foi a segunda das suas 17 peças, e inovou o teatro brasileiro em muitas frentes: com seus diálogos ágeis, com o enlaçamento entre realidade, ficção e alucinação, com o psicologismo profundo, com a ruptura da narrativa tradicional, com a franqueza com que mostrava as fraquezas dos personagens.

Nelson atuava em várias frentes intelectuais: como jornalista do quotidiano, como jornalista esportivo, como jornalista policial e mais: cronista, teatrólogo, romancista, folhetinista, frasista…

No começo desta crônica referi o fait-divers. Voltemos a ele, com Nélson Rodrigues. Ele era o gênio do fait-divers. A série de crônicas “A vida como ela é” talvez seja o maior exemplo disso: partindo sempre de acontecimentos banais, que mal renderiam uma nota de jornal, Nélson criava verdadeiras perquirições da alma humana. E extraía lições do fait-divers. Lições que resumia em frases. Foi o grande frasista do fait-divers. Deixo algumas de suas frases, todas elas extraídas da vida como é:

Só o inimigo não trai nunca.

Invejo a burrice, porque é eterna.

Deus está nas coincidências.

O dinheiro compra tudo, até o amor verdadeiro.

O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da inexperiência.

No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte.

O pudor é a mais afrodisíaca das virtudes.

O sábado é uma ilusão.

Os homens mentiriam menos se as mulheres fizessem menos perguntas.

Amar é dar razão a quem não tem.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

O jornalista acidental

Anterior

Resgate do Pretinho

Próximo

Você pode gostar

Comentários