Vamos começar falando sobre Nossa Senhora do Ó. Vocês sabem de onde vem esse Ó? Quando eu era criança me intrigava saber o que significa esse Ó, mas ninguém me dava resposta satisfatória. Seria uma deferência à letra ó? Se fosse, por que não haveria uma Nossa Senhora do I, do É, do Õ? Ninguém sabia me explicar. Procurei sabê-lo, mas foi em vão que consultei enciclopédias e os livros que havia em casa que, supostamente, poderiam elucidar a questão, dentre os quais os “Estudos da História Religiosa” de Ernest Renan, que só serviu para complicar ainda mais as coisas.
Meu pai ironizou: “Pergunta ao Ó de Almeida”. O jornalista Emanuel do Ó de Almeida era, então, vereador de Belém. Suspeitei da ironia, acostumado ao senso de humor estranho de meu pai, e refleti que o nome do ilustre vereador havia de se relacionar com a questão que eu colocava, mas que ele próprio não poderia, provavelmente, elucidá-la.
E então minha avó, a d. Nida, já farta de minhas questões complicadas e provavelmente considerando que minha pergunta guardava certo desrespeito por Nossa Senhora (afinal, se ela era do Ó, se ela queria ser do Ó, o que tinha, eu, a ver com isso?), ralhou comigo: “Pergunta mais impertinente! Tem coisas que são como são. Vai brincar, vai ver televisão! E para de pensar nessas coisas!”
O desgaste de minha avó comigo se devia, na verdade, à minha complexa relação com o mundo. Eu era um curioso irremissível. “Todo dia esse menino impertinente vem com uma marmota; eu não aguento mais!”, comentava, minha amada avó, a meu respeito.
De fato, eu devia ser uma criança muito chata. Além de minhas questões serem muitas, minha contumaz postura de ficar quieto, apenas observando as coisas e refletindo comigo mesmo a respeito delas, parecia ser incômoda à minha família. “Credo, pareces uma múmia. Por que tu não vais brincar, menino?”.
O fato era que eu persistia na mais vã tentativa de entender o mundo, muito estranho, que me rodeava. E olha que eu nem falei a vocês sobre a profunda perturbação que me causou saber – através, banalmente, do Fantástico, o programa de tevê – da existência do Terceiro Segredo de Fátima… algo que me apavorou durante mais de dois anos e que considerei ser a questão mais importante a ser resolvida pela douta humanidade…
Mas voltemos a Nossa Senhora do Ó. Aliás, ainda não. Primeiro deixem que eu pergunte se vocês viram o filme Nostalgia (1982), de Andrei Tarkovsky. Na primeira cena, o personagem principal, um russo exilado na Itália, vai ver a Madonna del Parto, obra de Piero dela Francesca, obra que lhe lembrava sua esposa. Provavelmente o Concílio de Trento não gostaria do filme, se tivesse oportunidade de vê-lo. E isso porque o Concílio de Trento reprovou as imagens da Virgem grávida.
Daqui a pouquinho retorno para revelar o mistério desse Ó – embora não do Terceiro Segredo de Fátima, do qual apenas o Papa e uns apostos, ao que se sabe, têm conhecimento. Antes, permitam que fale sobre Tarkovsky. E nem mesmo sobre o cineasta referido, mas sobre seu pai, Arseny Tarkovsky.
Quando estudei na UnB, em Brasília, lá fazendo amizade com um outro Andrej – desta vez com j, mas que, naturalmente, se pronuncia como i – , filho de um diplomata romeno, tomei conhecimento do livro “Благословенный свет” – evidentemente em tradução porque é claro que eu não entendo nada de russo – no caso para o inglês, como “The Blessed Light” (1993): “I waited for you yesterday since morning, / They guessed you wouldn’t come”… Descobri depois que o poeta era pai do cineasta, que eu conhecia pelo excelente “A infância de Ivan”, filme que vi no cine Líbero Luxardo, de Belém, quando esse cinema exibia filmes clássicos…
Pois bem, como dizia, o filme “Nostalgia” começa com o protagonista indo ver a Madonna del Parto. E, daí, retornamos a Nossa Senhora do Ó. E esclareço, afinal, que ela é a Virgem Grávida.
No velho latim, foi Maria gravida – sem acento – ou, ainda, a Expectatio Beata Maria Virginis. Em França, recebeu o nome de Notre-Dâme la Blanche. Nas Alemanhas, foi Maria in der Hoffnung. Na Itália, foi a Madonna del Parto, do afresco de Piero dela Francescea, pintado por volta de 1455 e até hoje exposto no museu da vila de Monterchi – terra natal da mãe do pintor (e isso é significativo), na Toscana.
Na península ibérica, enfim, foi Nossa Senhora do Ó, ou Nossa Senhora da Expectação. A devoção surgiu em Toledo, durante o Décimo Concílio, que determinou que a festa da Anunciação seria realizada no dia 18 de dezembro. E, agora, vamos à solução do mistério.
Sabendo que Nossa Senhora do Ó é a Virgem Gravida, desvelamos que esse Ó vem de uma antífona, ou seja, de uma melodia curta, proferida em canto gregoriano, antes e depois da recitação de um Salmo. Às vésperas da Anunciação – o episódio bíblico no qual o arcanjo revela a Virgem Maria que ela está grávida do Salvador – em todas as igrejas da península ibérica, se entoava uma antífona maior, uma antífona que, necessariamente, iniciava com uma exclamação: “Oh!”.
Daí a Nossa Senhora do Ó. O povo teria passado a denominar essa solenidade como Nossa Senhora do Ó. O ó é de exclamação, proferida pelo arcanjo e, simultaneamente, pelos devotos da Anunciação.
Uma antífona é, geralmente, composta de cânticos curtos, com texto entre dez e vinte e cinco palavras. Sua melodia é muito simples, razão pela qual é gravada, longamente, na memória das pessoas.
E eis aí a resposta elucidadora: Nossa Senhora do Ó é a Virgem Grávida da cena da Anunciação e o seu Ó é um “Óh!” de adoração, enunciado pelo arcanjo Gabriel ao vê-la. Simples assim (quer dizer, mais ou menos simples).
(Na imagem, a Madona del Parto, de Piero dela Francesca)
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