Quem me conhece sabe, ou já me ouviu dizer, que a única mulher pela qual eu trocaria a minha esposa é Alcione, a Marrom. Me dá arrepios imaginar aquela voz poderosíssima a me cantar nos ouvidos, em tons tão elevados quanto afinados, capazes de fazer um amante da música perder o juízo: – Garoto maroto, travesso no jeito de amar, faz de mim seu pequeno brinquedo querendo brincar, garoto… Ou então: … mas tem que me prender, tem que seduzir, só pra me deixar louca por você, só pra ter alguém que vive sempre ao seu dispor, por um segundo de amor…
Paula, minha esposa há quase um quarto de século, já nem dá bola para as minhas sandices de costume, e apenas sorri a cada vez que aquele turbilhão que Alcione traz na garganta me faz proclamar juras de amor eterno pela bela e extravagante mulata maranhense, presença obrigatória em qualquer playlist de música popular brasileira que se preze.
Quantas e quantas noites passamos em Benfica, à beira da mata, na casa que construímos e que nos acompanhou por vinte anos, ouvindo Alcione, sem dúvida uma das maiores cantoras que esse país já produziu. Quando a Marrom entoava a mais espetacular versão de Nossos momentos, após a mágica introdução escrita como poema pelo trompete de Márcio Montarroyos, parecíamos estar ouvindo toda a beleza que se poderia ouvir: Momentos são iguais àqueles em que eu te amei, palavras são iguais àquelas que eu te dediquei; eu escrevi na fria areia um nome para amar, o mar chegou, tudo apagou, palavras leva o mar…
Acontece, preciso confessar, mesmo temeroso e envergonhado, que estou traindo Alcione. Acontece, preciso admitir, que reencontrei em janeiro, no Rio de Janeiro, um grande amor do passado, e aí paciência, vocês bem sabem como são essas coisas… O finado Tim Maia, eterno síndico, já dizia, aliás já cantava paixão antiga sempre mexe com a gente.
Pois bem, na condição de réu confesso, para citar uma vez mais o grande Tim, não posso mais esconder, nem da Alcione e nem da Paula, meu atual e inescondível chamego, aquela que tem embalado meu coração e me proporcionado momentos de absoluto prazer auditivo: Angela Maria Diniz Gonsalves, assim mesmo, Gonsalves com s, só para que o sobrenome pareça único e inigualável como sua dona.
Paula, sempre sábia e perspicaz, já me disse que são pequenas as chances do meu amor ser correspondido, remotas mesmo, talvez ainda menores do que no caso da Marrom, mas não posso fazer nada. Só me cabe viver as agruras desse amor de mão única.
Pra quem não sabe ou ainda não reconheceu, a tal Angela Gonsalves é mais conhecida como Angela Roro, um verdadeiro monumento da MPB, dona de uma rouquidão capaz de derreter as geleiras do Ártico, pousada sobre melodias que parecem canções de ninar, com letras que parecem voar a centenas de quilômetros por hora, dignas do furacão que fui rever no Teatro Rival, na Cinelândia.
De lá pra cá não me saem da cabeça os versos de Simples carinho – …amar é sofrer, eu vou te dizer, mas vou duvidar, querendo ou não, o meu coração já quer se entregar… -, de Escândalo – …mas doce irmã o que você quer mais, eu já arranhei minha garganta atrás de alguma paz, agora nada de machado e sândalo, eu já estou sã da loucura que havia em sermos nós – ou de Na cama – …a droga do seu beijo até você me envenenar, manchar a sua boca até você me tatuar…
Que show, senhoras e senhores, que espetáculo! Angela, um microfone, um pianista e toneladas de talento, picardia, bom humor e boa música. Saí de lá extasiado, encantado, já pronto para trair a Marrom publicamente, na frente de todo mundo, especialmente na frente da minha querida esposa, que já não dá bola para essas paixões platônicas e nem reclama das minhas muitas monomanias.
Sorte tenho eu de ter a Paula, a Marrom e a Roro. Sorte temos nós de ter a melhor música do planeta. Só falta darmos a ela um pouco mais de atenção e espaço, retomando um território atualmente invadido por bárbaros.
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