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A edição impressa – em três volumes -, e um site com o conteúdo completo e extras do relatório final da Comissão Estadual da Verdade do Pará serão lançados oficialmente no dia 31 de março deste ano. O livro tem o selo da Editora Pública Dalcídio Jurandir, da Imprensa Oficial do Estado. Intitulado Relatório Paulo Fonteles Filho, em homenagem ao saudoso relator da CEV-PA, o material é rico de informações e engloba o trabalho da Comissão da Verdade, Memória e Justiça do Sindicato dos Jornalistas do Pará, que pela primeira vez na história teve assento em uma Comissão de tamanha importância, que atravessou dois governos e uma pandemia e sofreu duras perdas: em 26 de outubro de 2017, a de Paulinho Fonteles, seu idealizador e relator. E em agosto de 2020 a do presidente da Comissão, o advogado Egídio Sales Filho, vítima da Covid-19, além de perdas colaterais que acabaram desagregando parcialmente o grupo.

Criada por lei estadual sancionada pelo então governador Simão Jatene no dia 31 de março de 2014, instalada oficialmente em 1º de setembro de 2014 nas dependências do Espaço São José Liberto, que funcionou na época do regime militar (1964 a 1985) como presídio e recebeu vários presos políticos, a Comissão da Verdade no Pará investigou casos de perseguição política, tortura, desaparecimentos, mortes e ocultação de cadáveres no período da ditadura militar. Enfrentou dificuldades operacionais para executar sua missão e, em 2018, houve o seu encerramento regimental, por decurso de prazo. Agora, sob os auspícios do governador Helder Barbalho e do presidente da Assembleia Legislativa, deputado Chicão, a Ioepa finalmente publicará o resultado da apuração.

Uma reunião histórica marcou a edição final do relatório, na Alepa, nesta quarta-feira (16), pelos membros remanescentes da CEV: o deputado Carlos Bordalo, representante da Alepa; o advogado Marco Apolo Santana, da SDDH – Sociedade de Defesa dos Direitos Humanos do Pará; a psicóloga Jureuda Guerra, presidente do Conselho Regional de Psicologia; e a jornalista e advogada Franssinete Florenzano, pelo Sindicato dos Jornalistas do Pará e presidente da Academia Paraense de Jornalismo. Angelina Anjos, viúva de Paulinho Fonteles e secretária-executiva da CEV, teve papel fundamental, desde o início dos trabalhos, que antecederam a própria Comissão, criada depois de muita luta dos que a integraram. De São Paulo, on-line, o jornalista Ismael Machado e o documentarista Marcelo Zelic, que foram contratados pela Comissão para organizar o relatório, apresentaram a sistematização. A versão digital, que será interativa, vai deixar disponíveis documentos, artigos, depoimentos, gravações e vídeos de sobreviventes de conflitos e torturados no Pará, e será administrada pela SDDH-PA. O diretor da Editora Dalcídio Jurandir/Ioepa, Moisés Alves, assumiu o compromisso de lançar a edição na Feira do Livro, no final de maio deste ano. Leonardo da Silva Torri, diretor do Arquivo Público, também participou da reunião.

A repressão e a violência física e psicológica fizeram e ainda fazem parte da vida de muitos jornalistas no Pará, em um contexto de cobertura de fatos envolvendo conflitos agrários, ocupação socioeconômica da Amazônia e a própria visão política da região. Renato Soares, Raimundo Jinkings, Luiz Maklouf Carvalho, Benedicto Monteiro, João Marques, Raimundo José Pinto, Manoel Bulcão, Pedro Estevam da Rocha Pomar (que usava o codinome Marcos Soares), Ana Diniz, Lúcio Flávio Pinto, Paulo Roberto Ferreira, João Vital, Sérgio Palmquist, Agenor Garcia, Rosaly Brito, Miguel Chikaoka e Sérgio Bastos, entre outros que atuavam tanto na chamada grande imprensa quanto em jornais alternativos como o “Resistência”, editado pela SDDH, sofreram na pele a supressão das liberdades civis. Mais de trezentas pessoas são citadas nos livros “Cabanos e Camaradas”, de Alfredo Oliveira; “Dom Alberto Mandou prender seus padres”, de Osvaldo Coimbra, “Dando nomes aos bois”, de João Lúcio Mazzini da Costa, e “1964 – Relatos subversivos. Os estudantes e o golpe no Pará”, de André Costa Nunes, Isidoro Alves, João de Jesus Paes Loureiro, José Seráfico, Pedro Galvão, Roberto Cortez, Ronaldo Barata e Ruy Antonio Barata, com colaboração de Geraldo Martyres Coelho e José Seráfico.

Aurélio do Carmo foi o primeiro governador a apoiar o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart. Em 9 de junho de 1964, porém, o presidente Humberto Castelo Branco, com base no Ato Institucional nº. 1 (9/4/1964), cassou seu mandato e suspendeu seus direitos políticos por dez anos, aplicando a mesma pena ao vice-governador Newton Burlamaqui de Miranda, ao prefeito de Belém, Luís Geolás de Moura Carvalho, e a seu vice-prefeito, Isaac Soares. Os secretários de Estado Henry Kayath, Efraim Bentes, Evandro do Carmo, Antônio Lobo, Reis Ferreira, José Maria Mendes Pereira e Irineu Lobato foram presos e tiveram seus lares invadidos. Na mesma data, foram cassados os mandatos de três parlamentares, sem a suspensão de direitos políticos: Hélio Gueiros (líder do Governo), Benedicto Monteiro, Laércio Barbalho (avô do atual governador, Helder Barbalho, e pai do senador Jader Barbalho) e Amílcar Moreira. O desembargador Otávio Marcelino Maciel também foi vítima de violência ditatorial. O coronel Jarbas Passarinho assumiu o governo do Pará, eleito indiretamente pela Assembleia Legislativa.

Em 18 de março de 2013, a Alepa realizou sessão solene histórica, de devolução simbólica dos mandatos políticos cassados durante o regime militar, no Estado do Pará. Momentos emocionantes de lembranças dolorosas de um tempo em que foram suprimidas as liberdades individuais e coletivas e de perseguição e humilhação a quem não se curvou ao tacão da ditadura; de celebração pela convivência pacífica entre contrários, corolário da democracia. Todo e qualquer regime de exceção merece repúdio, não importa se de esquerda ou de direita, eis que o que o caracteriza é a violência.

Os órgãos de repressão do regime militar brasileiro assassinaram ou fizeram desaparecer 434 suspeitos de dissidência política e mais de oito mil indígenas, e pelo menos trinta mil pessoas foram presas ilicitamente e torturadas, ao longo de 21 anos. Só no Pará, mais de 350 guerrilheiros e camponeses foram assassinados, de 1964 a 1985. Das três ações penais movidas em todo o Brasil pelo Ministério Público Federal em desfavor de militares envolvidos em crimes contra a Humanidade e graves violações a direitos humanos, duas tramitam no Pará e os denunciados são Sebastião Curió e Lício Augusto Maciel.

Jornalistas, advogados, artistas, estudantes, servidores públicos e trabalhadores em geral, inclusive agentes de pastoral, leigos e clérigos, como o bispo da Prelazia de Marabá, Dom Alano Pena, e o bispo de Conceição do Araguaia, Dom Estevão Avelar, foram perseguidos. O padre Roberto de Valicourt foi preso em 1º de junho de 1972, após celebrar a missa de Corpus Christi em São Domingos do Araguaia, e torturado, juntamente com a irmã dominicana Maria das Graças. Em 1976 D. Estevão denunciou o uso de Napalm, o que afetou a vida dos camponeses e ribeirinhos da região. Em confronto armado com guerrilheiros, dois policiais militares foram mortos e Dom Estevão indiciado por assassinato. Os padres Florentino Mabonie e Hilário Costa foram presos e torturados. O padre Giuseppe Fontanella, sob alegação de falta de documentos, foi expulso do País em 1977. E os padres Aristides Camiou e François Gouriou, cuja rumorosa prisão se constituiu num dos episódios mais marcantes no Pará, foram julgados pela Justiça Militar e deportados em 1981.

Os “anos de chumbo” também causaram consequências arrasadoras aos povos da floresta, que sofreram a violência e o desmatamento como a outra face do modelo de desenvolvimento e integração levado a cabo pelos militares. A reação foi duramente reprimida. De 1972 a 1974, durante as três operações que resultaram no desmantelamento da guerrilha que havia se instalado em pleno território indígena, todos os homens adultos da etnia Aikewara foram forçados a guiar os militares nas expedições de captura dos guerrilheiros, por seu conhecimento das matas da região, e as mulheres e crianças mantidas reféns em suas próprias casas, impedidas de sair até para colher alimentos nas roças (que foram queimadas), caçar, ou mesmo para satisfazer necessidades fisiológicas básicas. 

É digno de nota que todos os veículos de comunicação e a classe média brasileira apoiaram o golpe civil-militar e colaboraram com a ditadura, no início, sob a promessa não cumprida do marechal Castelo Branco de que a tomada do poder seria algo temporário.

Paulo Fonteles de Lima, preso político ainda estudante, foi torturado no Ministério do Exército, assim como sua esposa Hecilda Veiga, socióloga e professora da UFPA, cujo parto de Paulinho Fonteles foi no cárcere, com corte a sangue frio e debilitada pela tortura. Sobrevivente da guerrilha do Araguaia, advogado de posseiros e deputado estadual, Paulo Fonteles foi assassinado por pistoleiros de aluguel, em 11 de junho de 1987. Humberto Cunha, agrônomo, e Isabel Tavares, historiadora, quando estudantes, em Brasília, foram vítimas do Decreto 477, que legitimava a expulsão de estudantes que figuravam na lista de subversivos. Os quatro atuaram como militantes de organizações clandestinas e eram membros do PCdoB mas estavam legalmente filiados ao MDB, o partido de oposição consentido pelo regime.

O livreiro Raimundo Jinkings tinha entre seus clientes até militares tidos como da linha dura. Com intensa militância no Sinjor-PA, vice-presidente da SDDH, escrevia com frequência artigos para o jornal Resistência. Foi militante ativo do núcleo pela anistia da SDDH e por isso mesmo pagou caro quando a entidade decidiu promover um debate com Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco, preso e perseguido político, que retornara do exílio poucos meses antes. Na véspera da chegada de Arraes a Belém, a porta da igreja de N. Sra. de Aparecida (onde funcionava a SDDH) amanheceu pichada com a aterrorizante inscrição “CCC” (Comando de Caça aos Comunistas) e a Livraria Jinkings foi alvejada por uma rajada de balas. O mesmo aconteceu na casa do presidente da SDDH, o economista Jaime Teixeira. Perseguições a jornalistas como Emanoel Moura, Benedicto Monteiro, Haroldo Sena e a tentativa de homicídio contra Elias Pinto são outras tristes memórias.

Membro da Academia Paraense de Jornalismo, Manoel Bulcão, que faleceu aos 82 anos, integrava a lista de inimigos do regime militar. Após o AI-5 foi proibido até de sair da redação. Considerado subversivo, foi preso seis vezes e respondeu a três processos. Nem sabia o porquê, era só um general presidente da República se deslocar ao Pará e ele ficava encarcerado. Um dia, por falta de viatura, foi obrigado a humilhante desfile a pé, preso, na via pública, a caminho do quartel. Na rua, sua esposa testemunhou a sofrida cena. O depoimento de Bulcão à Comissão da Verdade do Sinjor-PA foi emocionado e emocionante, de uma história que ainda será contada a partir dos fragmentos que se recolhe. Testemunho ocular de um tempo de trevas em que a liberdade virou sonho e esperança.

É preciso curar as feridas, promover o encontro do cidadão brasileiro com a História, a fim de que nunca mais se repita a república da dor, cujos atores são o pau-de-arara, a cadeira-do-dragão, a geladeira e o soro da verdade, que junto com espancamentos, afogamentos, choques elétricos e outros instrumentos de tortura marcaram esse período sombrio do nosso País.

A Constituição Brasileira de 1988 é, por si só, uma resposta às violações cometidas no período ditatorial. É responsabilidade de todos não permitir que o ódio, a intolerância e a irracionalidade conduzam as crenças e motivações de agir no cenário político. É preciso cautela para impedir que a tragédia reincida  e as feridas, ainda não cicatrizadas, voltem. Além dos já citados, foram também membros titulares da Comissão Estadual da Verdade do Pará o historiador João Lúcio Mazzini, do Arquivo Público; Renato Theophilo Marques de Nazareth Netto, da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos e Ana Michelli Gonçalves Siares Zagalo, da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social. A Comissão da Verdade, Memória e Justiça dos Jornalistas do Pará foi integrada pelas jornalistas Luciana Kellen, Priscila Amaral e Franssinete Florenzano e pelos jornalistas José Maria Piteira e Emanuel Villaça.

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, presidente da Academia Paraense de Jornalismo, membro da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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1 Comentário

  1. O produto final dos trabalhos da Comissão da Verdade, dando publicidade com maior alcance, será de grande valia para uma camada da sociedade que nunca teve acesso a estes acontecimentos, que lamentavelmente macularam a imagem pública e política em nosso estado.

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