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No dia 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas no Brasil, o povo Mẽbêngôkre Xikrin protagonizará um grande evento cultural e esportivo no Teatro Jarbas Passarinho, em Altamira, quando acontecerá o lançamento do documentário “Raízes da Celebração”, que retrata, pela primeira vez em vídeo, a tradicional festa Kwyrykangô — também conhecida como a Festa da Mandioca — sob a ótica dos próprios Xikrin.

Antes da exibição, o público assistirá a apresentações de dança e canto tradicionais, e após o filme será realizado um debate com realizadores, parceiros institucionais e membros da comunidade indígena. O filme tem duração de 30 minutos, com uma narrativa em primeira pessoa, livre de mediações externas e respeitosa à cosmovisão Mẽbêngôkre Xikrin, revelando as camadas simbólicas e espirituais da Festa da Mandioca, ritual ancestral que celebra a colheita, a fertilidade e a união entre gerações.

Narrado inteiramente em sua língua ancestral, o filme não só eterniza um dos rituais mais importantes da etnia como também reafirma a centralidade do idioma na resistência cultural do povo. “A nossa língua é nossa raiz. É com ela que aprendemos a viver, que ouvimos nossos avôs e avós, que cantamos”, afirmou Kroire Xikrin, liderança e secretário da Associação Indígena Berê Xikrin. Para ele, registrar a festa com tecnologia é uma forma de garantir que as novas gerações mantenham vivo esse legado. “Antes, tudo era passado na palavra falada. Agora queremos deixar registrado, para que nossos filhos e netos possam ouvir, ver e se reconhecer como povo Mẽbêngôkre Xikrin.”

A ideia de registrar a Kwyrykangô partiu da própria comunidade, e o processo de produção foi construído com participação ativa das lideranças indígenas. “Foi uma experiência muito especial para nós”, disse Bep Kamaty Xikrin, presidente da associação e cacique da aldeia Krãnh. “Sempre vivemos essa festa entre nós, do nosso jeito. Fazer esse documentário foi um passo importante, porque agora podemos mostrar para o mundo quem somos, com o nosso olhar.”

Bep Kamaty também acompanhou de perto todas as etapas das gravações, garantindo que a visão de mundo Xikrin fosse respeitada. “A equipe técnica sempre escutou, perguntava se o que estavam filmando estava certo. Houve muito diálogo e respeito. Foi um trabalho feito junto, com muita colaboração, e isso fez toda a diferença para manter a nossa verdade ali.”

A decisão de manter o áudio exclusivamente em Xikrin não foi apenas estética, mas profundamente simbólica. “Queremos que o documentário seja assistido dentro das comunidades, pelas crianças, pelos jovens, pelos anciãos”, explicou Bep. “Ver e ouvir a nossa própria língua numa tela é motivo de orgulho e fortalece a nossa identidade.”

Para o coordenador do projeto, Robson Santos, o filme é uma oportunidade de sensibilizar o público não indígena e romper estereótipos. “Esperamos que o público entenda que nós existimos, que temos uma cultura forte e viva, e que precisamos do apoio de todos para continuar mantendo essa cultura”, disse. “A mandioca não é só um alimento, mas parte da nossa espiritualidade, da nossa forma de viver, da nossa relação com a terra.”

Durante o evento, o público também pôde participar de sessões de pintura corporal com jenipapo, conduzidas pelas Menires — mulheres Xikrin que carregam o saber ancestral das técnicas de grafismo, canto e confecção de biojoias. Robson destaca o protagonismo feminino como eixo central da cultura Xikrin. “A nossa cultura só continua viva porque elas mantêm os conhecimentos. Hoje, as mulheres estão também assumindo papéis de liderança. Ver as Menires expondo seus artesanatos e mostrando seu saber é uma forma de afirmação, protagonismo e resistência. A arte delas é força.”

Segundo os organizadores do documentário, um dos maiores desafios foi traduzir um ritual sagrado para o audiovisual sem distorções. “A maior responsabilidade foi honrar e respeitar integralmente a essência da festa e a forma como o povo a vivencia”, explica a equipe. A construção coletiva do roteiro e da edição contou com a presença constante de lideranças como Bep Kamaty e Kroire, que também atuou como narrador. “A participação ativa da comunidade foi fundamental para garantir que a narrativa representasse verdadeiramente o significado profundo da festa.”

A opção por manter a trilha sonora majoritariamente com sons ambientes e registros originais do festival também seguiu essa lógica. “Buscamos captar as expressões autênticas da cultura Xikrin — nos ritos, nos hábitos, nas atitudes — e equilibrar isso com a consciência dos desafios que enfrentam no mundo atual.”

O projeto contou com patrocínio da Transpetro, Itaú Cultural e Equatorial Energia via Lei Rouanet. “Essas parcerias nos ajudam a manter nossa autonomia, porque o projeto é feito por nós, para nós, com a nossa associação. Isso é resistência, isso é futuro”, segundo Kroire Xikrin. “Essas iniciativas mostram que nós, povos indígenas, também podemos usar a tecnologia e as leis do Brasil para fortalecer a nossa cultura”, afirmou. 

A equipe do documentário também reforça a importância das leis de incentivo como ferramenta democrática de valorização cultural. “Elas viabilizam que a história dos povos originários seja contada e preservada — e essa cultura é também a história de todos os brasileiros.”

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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