É super curioso ainda hoje nos depararmos com as mesmas questões presentes nos primeiros casos clínicos de histeria analisados por Freud nos primórdios da psicanálise. São velhas questões que apenas se tornaram mais complexas. As somatizações, com suas múltiplas facetas dos modos de subjetivação, constituem uma parte expressiva das demandas manifestas nos consultórios. E, sempre que penso nesse tema, vem à mente o livro da Joyce McDougal intitulado “o teatro do corpo”. O título é fantástico. Gosto muito da ideia metafórica do corpo como um grande teatro que encena os conflitos pulsionais.
As queixas sobre dores sem causa aparente, disfuncionamentos sem explicação e doenças autoimunes sugerem que o corpo tem uma outra via que escapa de um saber constituído. Porém, onde caberia um olhar mais plural sobre o sofrimento e com outros direcionamentos em relação ao tratamento, não raro, são analisados apenas sob a óptica nosológica com foco nas alterações da forma e estrutura do organismo.
Obviamente que destacamos a importância dos campos da medicina psicossomática e da psicologia médica por constituirem espaços importantes nas abordagens das patologias com ênfase na origem, na causa, no curso e no prognóstico. A questão é que os estudos minuciosos das funçôes, do funcionamento, bem como da estrutura e forma do organismo, não encontram resposta sobre o que movimenta a ânima do indivíduo e delinea esse corpo que conhecemos daquele corpo erógeno que ao mesmo tempo sofre e goza. Os quadros dessas afecções são de tamanha complexidade, não comportando visão unilateral e reducionista.
O surgimento da psicanálise traz uma nova maneira de pensar sobre esse adoecer orgânico. O corpo e a mente (psique-soma ou psicossoma) são considerados unidade, bem como a origem multifatorial das patologias. Porém, somente mais tarde, com a descoberta do inconsciente, é que veio à baila a “vida dupla do corpo”. Isso mesmo, são duas vidas distintas onde o sujeito, em uma delas, põe em cena os conflitos internos que permeiam sua mente e os afetos são descarregados no corpo através dos sintomas.
O importante é olharmos para esses sintomas como uma saída criada pelo sujeito para lidar com “isso” que está acontecendo com ele. É como um terremoto psíquico que precisa ser extravasado de alguma forma. Essa pulsão que não consegue se direcionar ao outro acaba achando a “solução” no próprio corpo. Comparamos a um relacionamento “autístico”. Não estou falando de autismo. Refiro-me a estar voltado para si mesmo, fechado em si mesmo.
Com frequência o leigo se refere aos conflitos encenados no corpo como fenômenos psicossomáticos. Mas existem também conversões histéricas como forma de linguagem corporal. A diferença entre elas é que nas manifestações psicossomáticas o corpo é organica e funcionalmente afetado, sendo possível constatar através de exames. Já nas histerias de conversão o real do corpo não é afetado. São casos em que o indivíduo, por exemplo, sente dor, parestesia, desmaio, membro paralisado, cegueira, etc, entretanto, exames não identificam a causa.
O que singulariza a psicanálise ao analisar os fenômenos somáticos é a sua capacidade de ultrapassar a dimensão corpórea, introduzindo as perspectivas imaginária, real e simbólica e a sexualidade que, apesar de ter origem no corpo, está ligada às pulsões. Assim, com a compreensão da circulação pulsional do sujeito, a psicanálise possibilitou um melhor conhecimento do modo de funcionamento do indivíduo e passou a ver a anatomia como algo construído por investimentos libidinais.
É imperativo que, antes de tentar compreender as significações subjacentes ao cenário psiquico enigmático do paciente, o analista seja capaz de observar e compreender o seu próprio teatro interior. Entender o cenário do paciente só é possível quando o analista se deixa levar até as peças teatrais da primeira infância do indivíduo, na qual os sentidos têm mais importância que as palavras e onde será, enfim, possível ver toda a trama oculta do Eu e ouvir como se conectam sofrimento, angustia e prazer.
Esclareço que nesse texto me atenho à abordagem exclusivamente pelo viés psicanalítico. Também é preciso lembrar que todos temos tendência a somatizar ao nos deparamos com questões internas ou externas da ordem do insuportável. Descobrir os enigmas da mente é a grande aventura psicanalítica e os que encaram essa verdadeira cruzada fazem-no com a esperança de que suas descobertas possibilitem aproveitar melhor a grande jornada que é a vida e enfrentar as tragédias e tormentas que ela inexoravelmente apresenta.
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