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Passei uns dias no Rio de Janeiro com a família. Julho por lá é muito bom, clima mais ameno, sem um sol pra cada um. A cidade não fica tão cheia, é possível conseguir vaga nos botecos e restaurantes e, melhor que tudo, não se ouve falar em carnaval e em blocos carnavalescos

Há quem goste da Folia de Momo, tenho certeza, e creio que a maioria expressiva dos brasileiros é adepta da festa e de tudo que a envolve, mas preciso admitir que neste caso específico componho a ampla e destoante minoria, e só não me considero ruim da cabeça ou doente do pé porque aprecio bastante o bom samba, o grande samba de Cartola, Nelson Sargento, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, João Nogueira, Agepê, Alcione, Beth Carvalho e tantos outros, aquele mesmo samba que, infelizmente, anda tão distante quanto eu do “baianizado” carnaval brasileiro.

Mas, enfim, não é de carnaval e nem de samba que pretendo tratar. Quero é falar do Rio de Janeiro, esse tesouro nacional, patrimônio material e imaterial da brasilidade, outrora cantado e decantado como a “Cidade Maravilhosa”, hoje bem mais afeito à magistral definição criada em 1992 por Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer, precisa e atual como se tivesse sido escrita ontem: “Purgatório da beleza e do caos, capital do sangue quente do Brasil, capital do sangue quente do pior e do melhor do Brasil.”

Do ufanismo de Antônio André de Sá Filho (que compôs a famosa marchinha em 1934) até a modernidade, o Rio passou por transformações e deformações significativas, algumas endógenas, outras exógenas, gestadas há mais de mil quilômetros da bela Baía da Guanabara, no planalto central brasileiro, sob o céu de Brasília e seus traços de arquiteto. Arrisco-me a dizer, aliás, que nenhuma outra cidade sofreu tanto e foi tão punida quanto o Rio pelos pecados capitais que o Brasil cometeu com desenvoltura e excelência ao longo dos últimos quarenta e poucos anos, desde a tão esperada e muito bem-vinda redemocratização.

A incompetência, a politicagem barata, o populismo e a corrupção desenfreadas que assolam o país e o estado desde então, tornaram o Rio aquilo que ele é – “uma cidade de cidades misturadas, uma cidade de cidades camufladas, com governos misturados, camuflados, paralelos, sorrateiros, ocultando comandos…”, como canta a charmosa e famosa vascaína, ela própria muito mais parecida com o Rio do que Helô Pinheiro e qualquer outra garota de Ipanema, Leblon, Copacabana, Irajá, Ramos, Bonsucesso, Bangu, Madureira, Vila Isabel e adjacências.

Não foi à toa, certamente, que todos os governadores fluminenses eleitos desde 1982 foram presos e afastados do cargo: Moreira Franco, Anthony Garotinho, Rosinha, Garotinho, Sérgio Cabral, Luiz Fernando Pezão e Wilson Witzel. Enquanto esse espetáculo macabro era encenado, os cariocas iam perdendo o direito de ir e vir na sua terra natal, impedidos de frequentar certos lugares e de transitar pela cidade sem temer pela vida ou pelo patrimônio.

Não sou carioca mas como bom brasileiro sempre tive prazer em visitar o Rio, e quando o fazia costumava circular pelos museus do centro, pelas casas de samba da Lapa e pelos restaurantes de Santa Tereza. Também ia muito a Vila Isabel, num boteco sensacional chamado “Petiscos da Vila”, do qual dizem que Noel Rosa foi frequentador assíduo. Desta vez, contudo, atento às recomendações que me foram feitas já no desembarque, reiteradas por diversos garçons, motoristas de taxi e outros profundos conhecedores da cena local, preferi me manter nos limites da Zona Sul, onde supostamente é menor o risco de enfrentar contratempos, assaltos ou confrontos armados de grandes proporções.

Talvez meus interlocutores tenham exagerado, sido cautelosos em excesso ou pintado o diabo mais feio do que ele é. Fato é que fiquei sobressaltado e preferi não arriscar. Restringi os trajetos ao Leblon, Ipanema, Copacabana, Lagoa e Urca, e escolhi voos que chegaram e partiram do Aeroporto Santos Dumont para evitar as Linhas Vermelha e Amarela, vias com histórico recente de tiroteios e arrastões.

É triste, eis que grande parte da beleza natural e cultural do Rio de Janeiro está nas Zonas Norte e Oeste, na outra face do Rebouças e da Rocinha, às costas do Redentor. Mas é ainda mais desanimador porque representa a derrota do estado de direito, o fracasso do aparato oficial de segurança diante do poder paralelo do tráfico e das milícias, aparentemente dominante.

Nada obstante, cumpre registrar por uma questão de justiça, nos locais por onde andei durante uma semana não presenciei nenhum roubo, nenhum furto e nenhum ato de violência. Se algo havia de anormal na paisagem urbana, este algo era a pobreza e a exclusão que decorrem da gigantesca e odiosa desigualdade social que nos marca, e que governo algum tem conseguido resolver ou ao menos reduzir, nem mesmo os que ostentam esse combate como estandarte principal, em mais uma das hipocrisias e idiossincrasias da política nacional.

O que vi, isto sim, foi uma cidade lindíssima, de uma beleza natural estonteante, com um povo que, embora não seja exatamente sertanejo, é antes de tudo forte, cheio de bom humor, esperança, simpatia e alegria de viver. Esse povo é a resistência que mantém o Rio de Janeiro vivo, vibrante e atraente. É ele que, vindo de todas as partes do país, acorda todo dia para trabalhar e tocar a vida, arrumando sempre um jeito de tornar o dia mais leve, dando um pulinho na praia, tomando um chopinho no fim do expediente, cantarolando um samba das antigas ou então discutindo futebol.

É esse povo que, a despeito do caos social e das tantas quadrilhas que dele se sustentam – umas de pé no chão e fuzil no ombro, outras de terno e gravata, umas sitiadas nos morros, outras instaladas nos palácios, driblando a fome ou balançando lenços em caríssimos banquetes parisienses – segue carregando o Rio de Janeiro nos braços, embalando-o com amor e desvelo, fazendo das tripas coração para mantê-lo único e inigualável, retrato fiel do Brasil, “do melhor e do pior do Brasil”

Só por essa gente já vale a pena voltar ao Rio, e se a urbe já não é tão maravilhosa quanto era quando lhe dedicaram a conhecida canção, por certo segue buscando com êxito outras maneiras de encantar quem se permite o deleite de visita-la, quem se aventura pela “cidade sangue quente maravilha mutante.”

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

Para Francisco Sidou:“Requiem aeternam dona eis, Domine”

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