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Lançado em 2015 e adaptado recentemente à Netflix, o livro divide-se em 17 capítulos em torno de um enredo bem atual da Amazônia Oriental Brasileira, a prostituição e suas rotas de tráfico humano. A obra escrita em uma linguagem rápida, tensa e bastante criativa, a que caracteriza a escrita de Edyr Augusto, confirma o romance como espaço de experimento: a língua em seu ambiente de expressão é o lugar mais propício para – ela mesma – expor a realidade, esta fonte difícil e ao mesmo tempo a mais impactante para um escritor.

Nenhuma língua é capaz de esconder a realidade, nada escapa do seu alcance, e o romance, assim, assinala na forma aquilo que a própria linguagem modela, e Pssica é a prova da escrita a partir da realidade cujo termômetro se mede pelo teor de um romance estilo policial noir, que, surgido no século 20, caracateríza-se por ser aquele que revela o lado obscuro de uma sociedade através de uma narrativa sobre temas polêmicos, apresentando uma galeira de protagonistas nada heróicos e sim realistas.

Pssica, talvez, escape do lado detetivesco do romane noir em sua essência e aponte uma espécie de mapeamento literário – e isso sim é interessante – territoriedade amazônica. É uma obra que decifra a complexa teia de rede de prostituição, nesse território angular a apontar para o norte, na fuga aberta que acontece a muitas pessoas sem perspectivas de vida na capital paraense. É o romance que desnuda o drama de muitas meninas que forçadamente são obrigadas a partir de Belém, ou do Marajó, ao destino de Caiena, capital da Guiana Francesa. E foi isso que aconteceu aos protagonistas do romance.

Na verdade, o movimento é sempre para o norte, a induzir o leitor a rever que a saída é arricar uma vida inteira, como é o caso da bela Janalice, a uma destino errático à sua juventude, porém, apontando a uma esperança, uma saída – como se vê nos relatos das que escaparam das máfias de prostituição, no notíciário do dia a dia.

Antes da obra revelar esse drama social, a obra deixa fluir, e isso merece pesquisa acadêmica detalhada, a língua portuguesa falada na nossa Amazônia paraense até se entranhar à francesa Guiana – este que é a forma narrativa em sua essência laboral pela qual a língua atinge sua expressão a partir do lugar de onde se fala – e é por isso que Pssica se torna recomedável primeiro um estudo de sua linguagem e depois as recomendáveis e necessárias adaptações cinematográficas ou em minisséries a atingir o público que interessa: o jovem.

A obra de Edyr Augusto fala, portanto, de um território de uma juventude, esta em especial que se vê a assumir os riscos da exposição virtual nas redes sociais, o machismo, a prostituição infantil e tráfico de mulheres, o tráfico de drogas, o porte ilegal de armas, a pirataria nos rios amazônicos, a falta de policiamento nas ilhas, o lado pernóstico das famílias, a adolescência, o sexo, a droga, a violência, a pirataria mercantil dos camelôs, e os drogaditos.

Este romance avisa que não há literatura boa que não mergulhe nas entranhas da língua que a produziu e a descasca cada fatia de uma cebola chamada realidade. E a língua é a realidade, como diria o filósofo Vilén Flusser. Não há literatura que não mostre as feridas que a fala expressa nos dizeres mais indóceis de seus falantes – essas mesmas formas registradas pelo escritor que as percebe, reelabora-as e as transforma na obra.

É o caso de Pssica, um romance que antes de ser um gênero literário noir amazônico é uma palavra viva, pulsando a ferida da linguagem que é no fundo a realidade. Pssica é palavra que faz parte de um linguajar paraense a significar a maldição lançada para alguém em especial, nada vai dar certo até se livrar do mal sofrido: o recomeço é a saída.

O romance em si tem aspecto de uma novela em uma dupla jornada: a história de Janalice, a adolescente de 14 anos expulsa de casa após uma vexatória exposição de sua intimidade com um estúpido namorado, cenas de sexo registradas no celular, e a do Manoel Tourinhos, o angolano, branco, o “Portuga” – que viu sua mulher ser depedaçada por ratos d’água – os temíveis piratas dos rios amazônicos.

Janalice e Tourinho são ambos personagens envoltos em um mundo vulnerável a toda sorte de violência tanto na capital como no interior da Amazônia que acabam por se encontrar ao final do romance não exatamente em Belém, ou mesmo em qualquer outra cidade do interior do gigantesco Grão-Pará, mas sim na Guiana, para onde ambos fogem a fim de escapar de seus infortúnios.

E o destino é sempre o norte.

Afinal, por que que todo romance tem que contar apenas uma história? É como a Amazônia, plural em seus dramas, não há, na obra, uma narrativa principal e sim um retratato da vulnerabilidade da vida humana na Amazônia paraense, em especial às cercanias de Belém e sua forte presença da portugalidade, na linguagem e nos hábitos ainda pulsando uma fronteira aberta a ser explorada e a vulnerabilidade social, principalmente à mulher.

Eu arrisco dizer, concluindo, que se trata de uma binarrativa que como na Amazônia, sempre há espaços para novas histórias a partir de um mesmo e pré-definido destino de personagens saídos da pulsante e obscura, violenta e sempre aterrorizadora realidade, acrescidos de um ato corajoso de uma escrita, em um excelente e original romance noir amazônico.

AUGUSTO, Edyr. Pssica. São Paulo : Boitempo :Belém, PA: Samauma editorial, 2015.

Benilton Cruz
Benilton Cruz é doutor em Teoria e História Literária, professor de alemão e do Curso de Letras-Português e Letras-Libras da UFRA, Campus Belém, autor dos livros: Olhar, verbo expressionista – O Expressionismo Alemão no romance “Amar, verbo intransitivo de Mário de Andrade; Moços & Poetas – Quatro Poetas na Amazônia - Ensaios Sobre Antônio Tavernard, Paulo Plínio Abreu, Mario Faustino e Max Martins; Espólios para uma Poética – Lusitanias Modernistas em Mário de Andrade; pesquisador e perito forense, editor do blog Amazônia do Ben; editor do Canal de Poemas No Meio do Teu Coração Há um Rio, no Youtube. Diretor da Academia Maçônica de Letras do Estado do Pará; e membro eleito da Academia Paraense de Letras.

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