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Costumo e ouso a pensar que, se a sociedade fosse um ser pensante, o direito seria o superego dessa psiquê coletiva. Desde os primeiros grupos sociais lá da aurora dos tempos, quando um humano entendeu que outro humano limitava suas ações e vontades, esteve ali o direito, em suas formas coercitivas primordiais, contrapondo vontades individuais, substituindo a cólera e as veleidades do arbítrio e organizando em grupos coesos esse animal feroz que é o ser humano. A minha paixão pelo direito é imensa e não vejo como as sociedades humanas poderiam existir sem esse grande sentinela de nossas fronteiras.

No texto da semana passada, falei um pouco sobre o jusnaturalismo, sempre na certeza de que é fundamental conhecer os clássicos e fazer boa revisão literária, a partir da leitura de uma das mais importantes obras de filosofia política do século XX. Hoje, continuarei sob a influência de Norberto Bobbio, cuja forma de organizar o pensamento científico e histórico muito de apraz.

Bobbio analisa o positivismo jurídico sob algumas perspectivas:
I- Pressupostos históricos
II- Abordagem doutrinária

Entre pressupostos históricos o autor analisa as origens do positivismo jurídico no pensamento clássico, as origens do positivismo jurídico na Alemanha, as origens do positivismo jurídico na França e as origens do positivismo nas filosofias de Bentham e Austin.

Na abordagem doutrinária o autor identifica o positivismo jurídico em uma análise avalorativa do direito, compreendendo-o como coação; sob a perspectiva da teoria das fontes, pela análise da teoria imperativista da norma jurídica; sob a análise da teoria do ordenamento jurídico, pela função interpretativa da jurisprudência e sob o paradigma da ideologia.

Para fins de elaborar um texto informal, abordarei o positivismo sob os mais relevantes tópicos da metodologia do filósofo de Turim, sobretudo em virtude de sua influente obra Teoria do Ordenamento Jurídico, que objetiva o estudo do direito como sistema. Deixarei de fora o trabalho de Hans Kelsen, cujo interesse é muito específico para os estudiosos do direito, embora entenda que a influência da Teoria Pura do Direito ainda é muito forte para a aplicação do direito e para a compreensão do fenômeno jurídico.

  1. Os Pressupostos históricos do positivismo levam em conta alguns episódios históricos que corroboraram o
    A ideia de método e de segurança jurídica, como por exemplo no código de Napoleão. o código de Napoleão Bonaparte, de 1804, além de ter concretizado os ideais da revolução francesa, foi a grande virada de chave para o pensamento jurídico moderno e legado do pensamento iluminista do século XVIII – antes do BGB alemão, que influenciou nosso Código Civil de 1917-, sistemática até hoje muito influente nos países do common law. Ao lado da codificação justiniana, a codificação napoleônica teve influência nos fundamentos de nossa cultura jurídica ocidental. Se o código de Justiniano fundou o direito romano na Idade Média, o código de Napoleão influenciou o pensamento jurídico dos três últimos séculos. Isto é absolutamente incrível e intelectualmente longevo.
    O povo francês deveria ter um dia em seu calendário dedicado à comemoração do dia do código de Napoleão, em virtude da importância histórica do código para a história jurídica do Ocidente.
    A filosofia iluminista foi o principal mote de inspiração do código. Para relembrarmos as aulas de história, o código resultou da cultura racionalista do iluminismo, com suas forças políticas e históricas, de onde eclodiu a revolução francesa.
    A simplicidade, a elegância e a unidade do código de Napoleão são, diz Norberto Bobbio, o leitmotiv que inspira os filósofos do início da era das códigos, sobretudo na França oitocentista, quando não havia um código sistematizando a multiplicidade de direitos territorialmente limitados.
    É importante ressaltar a influência do Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, de Jean-Jacques Rousseau, inspirando o pensamento iluminista e, também, a necessidade de leis garantindo direitos e colocando os homens a salvo do arbítrio e do despotismo de governantes tiranos. Esse pensamento orientou os juristas da Revolução Francesa.
    O código de Napoleão, de inspiração e primazia para a ideia da codificação breve, simples, elegante e unitária, coordenou as leis civis à construção da revolução, de 24 de junho de 1793. Nós, influenciados pelo sistema common law, devemos muito à grande virada de chave dos franceses. Segundo Napoleão, seu código seria tão simples, claro e objetivo que não precisaria ser interpretado. Obrigada, povo francês. Brindemos essa batida de martelo na cara do decisionismo. Touché!
  2. Abordagem doutrinária: nesta abordagem, dedicarei o estudo à teoria do ordenamento jurídico e ao positivismo jurídico como ideológica do direito.
    É interessante a análise do positivismo como ideologia, tendo-a por um conjunto de valores fundados em um sistema de princípios eleitos em determinada realidade, com o objetivo de influenciar essa mesma realidade, modificando-a ou conservando-a. Para Bobbio, ao contrário de uma teoria, que podemos julgá-la falsa ou verdadeira, uma ideologia é apenas caracterizável de conservadora ou progressista. Neste sentido, vale a pena assinalar que a ambição do positivismo jurídico foi sempre assumir uma atitude neutra em face do direito, tal qual ele é (análise de fato) não como deveria ser (análise valorativa). O positivismo teve, portando, a proposta metodológica de abordar o fenômeno jurídico pelas lentes da ciência, a partir de um método científico válido (ressalvem-se as críticas ao modelo para um texto científico), com esta pequena exceção do positivismo ideológico.
    O positivismo teve como pressuposto subtrair o direito do ambiente meramente valorativo, aberto à discricionariedade e ao arbítrio. Os estudos superficiais do positivismo confundem-no com mera ideologia ou com o dever de obediência cega à lei. No entanto, a lei não é a única fonte do direito. Para o positivismo como ideologia, a obrigação de obedecer à lei não é meramente jurídica, mas também moral. Obedecer à lei, neste sentido, é uma obrigação a todos imposta. Inclusive aos que aplicam a lei. O positivismo ético, como ideologia do direito foi uma atitude ideológica do positivismo tendente a conduzir a extremismos. Talvez tenha sido esta a má percepção deixada pelo positivismo fora do ambiente acadêmico.
    A teoria do ordenamento jurídico, com sua simplicidade, organicidade e elegância encanta a minha mente desde a faculdade de direito. Enxergar o direito da perspectiva de um organismo ou de uma máquina é muito interessante, sobretudo quando se pretende, segundo Bobbio, chegar ao coração da ciência jurídica. O rechtsordnung dos alemães; ordenamento para os latinos, buscou a coerência, a lógica e a simplicidade na aplicação racional do direito, com emprego de técnica e precisão. Coube a Santi Romano o primeiro estudo sistemático sobre o tema, mas o jurista de Viena, no início do século XX, consagrou a teoria em seu pensamento, durante o clímax do positivismo jurídico. É impossível não estudar algo de Hans Kelsen nas faculdades de direito, ainda que seja para sonhar à noite – e ter pesadelos – com a norma hipotética fundamental.
    Unidade, coerência, completude e segurança. Ainda hoje sonhamos com uma sociedade erigida sobre os pilares da justiça e da segurança jurídica, resultando do trabalho de pessoas estudiosas, aplicadas e em constante aperfeiçoamento, a fim de que possamos confiar que nossos guardiães da honra de Themis se mantém fiéis ao gigante superego, cuja guarda de fronteiras vigilantes mantém coeso o tecido da paz social. Assim vale a pena pagar boletos ao estado.
Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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