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Com frequência, essa expressão aparece sob a forma interrogativa: “Por que cargas d’água  a criatura fez aquilo?”. Percebe-se no seu uso, quase sempre, o desconhecimento do motivo que levou alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Tal pergunta é habitualmente formulada com perplexidade, com a intenção de demonstrar a falta de lógica de certo ato, fato ou procedimento. É como se você perguntasse: “Por que motivo aconteceu aquilo?”.

Sua origem remonta ao final do século XIII, quando começaram as primeiras navegações portuguesas em águas do Atlântico norte, região de mar aberto, portanto sujeita a severas tempestades, que desabavam em forma de forte pancadas ou cargas d’água. Fugindo delas, era comum os lentos navios da época se abrigarem no entorno dos Açores ou da Ilha da Madeira. Porém, escapavam às vezes do controle de seus hábeis timoneiros mercê da fúria da procela, fazendo com que as naus acabassem em destinos absolutamente imprevistos, quase sempre na costa africana.

Quando isso ocorria vinha a clássica pergunta, “por que cargas d’água a embarcação se extraviou?”. Sua repetição na linguagem coloquial varou os anos, traduzindo-se num questionamento, sempre exprimindo perplexidade. Os portugueses, ainda hoje substituem “cargas d’água” por “raios”, sem que o sentido da indagação se altere: “Por que raios meu time perdeu o jôgo?”.

Raul Seixas, o genial e irreverente “Maluco Beleza”, aproveitou a deixa para compor “Sapato 36”, em que ele indaga na músicao porquê de usar um sapato menor que o próprio pé, que lhe foi dado pelo pai: “Eu calço 37. Meu pai me dá 36 // Dói, mas no dia seguinte // Aperto meu pé outra vez (…) // Por que cargas d’águas // Você acha que tem o direito // De afogar tudo aquilo que eu sinto em meu peito(…)”. Note-se que a expressão traduz uma indignação, uma incredulidade, um espanto, diante de uma situação inusitada.

De há muito essa curiosa expressão ganhou um sentido mais amplo, alcançando situações para além daquelas vividas pelos navegadores portugueses e definitivamente se incorporou na linguagem do povo brasileiro. Pode-se utilizá-la para aludir às ações de uma pessoa, que saíram por completo do seu próprio controle, ou tiveram um resultado totalmente inesperado ou extravagante.

Como exemplo de como se pode invocar tal expressão, veja-se o caso de um chefe de cozinha que resolveu preparar uma iguaria, mas por errar no tempero, a comida restou intragável, daquelas que de tão ruim acabam provocando revolta em presídio. Ele indagaria certamente, “por que cargas d’água” o alimento ficou com péssimo gosto, por não atinar em que ponto do preparo se deu o erro.

A surpresa, a indignação, a incredulidade e a perplexidade são inerentes às situações fáticas esdrúxulas, inconcebíveis ou patéticas que dão ensejo ao uso da antiga frase dos navegadores portugueses. Como nesse outro exemplo, em que um sujeito estava calmamente sentado à varanda do seu sítio, contemplativo, absorto em seus pensamentos, curtindo o ensolarado fim da tarde, quando lá passou um “espírito de porco”, desses muitos que existem por aí, soltando no ar, em sua direção, o grito de sobressalto:

– Seu José, corra que sua mulher está se afogando no lago!!!…

Desarvorado e sem hesitar, partiu ele em desabalada carreira e mais além, extenuado e ofegante, parou um pouco para recuperar o fôlego e nesse breve tempo, conjecturou de si para consigo:

– Mas por que cargas d’água eu estou correndo feito doido? Meu nome não é José, meu sítio não tem lago e nem casado eu sou…

O certo é que quase sempre a expressão “por que cargas d’água” é utilizada com elevada dose de incerteza, dúvida, trejeitos na voz e até com ímpeto de justa ira, principalmente quando o fato que a motivou, expõe quem a pronuncia a uma situação surreal, senão ridícula ou absurda, como sem dúvida ocorreu com seu José, no hipotético episódio acima revelado.

Célio Simões
Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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