Publicado em: 28 de outubro de 2025
As expressões idiomáticas estão presentes em todas as línguas e culturas. Como tal, caracterizam-se por não ser possível identificar seu significado pelo sentido literal das palavras que as compõem, e sim pelo que querem dizer ou o que significam, após a consolidação do uso no nosso português de cada dia.
Nesse passo – e sem intuito de trocadilho – “PERNAS, PRA QUE TE QUERO?” é uma delas, tipicamente brasileira que significa correr, se mandar, se colocar a salvo, fugir de algo ou alguém ameaçador ou perigoso, para um lugar seguro.
Sua origem não é clara, permanecendo do campo do indefinido, mas a frase se tornou popular ao longo do tempo, como uma forma de dizer: “me ajudem a fugir”, “me ajudem a correr” ou ainda, “se eu tenho pernas, é para correr”.
Não há um registro específico que aponte um autor ou um momento exato da sua criação ou como teria ela surgido, que ao longo do tempo passou a ser repetida por jovens, adultos e idosos, para evidenciar que “vazaram” da cena que se mostrava perigosa, sinistra ou potencialmente ameaçadora.
A ideia central é de que as pernas, úteis e indispensáveis para caminhar, também servem para a fuga, para correr em direção a um lugar onde alguém não se sente vulnerável. É uma forma de traduzir o valor da agilidade, a necessidade de se locomover, para livrar-se de algo incômodo ou arriscado.
Dúvida não resta que é uma forma coloquial e humorística de dizer que alguém precisa se afastar rapidamente de uma situação embaraçosa. A expressão é frequentemente usada em contextos como “ele viu o meliante e saiu correndo!”, ou “pulei o muro da prisão e pensei: pernas, pra que te quero?”…
Além de chistosa, ela pode ser usada em diferentes situações, com a mesma conotação de fuga, de evasão. Em relatos de medo ou exigindo retirada estratégica, às vezes ela está subentendida, nem precisando ser pronunciada: “De volta a Belém e morando na CEUP (…), presidida à época pelo notável santareno José Gumercindo Rebelo, por 3 anos fui mais um entre os 75 universitários que batalhavam em busca da graduação, precariamente albergados naquele conhecido endereço da Av. 16 de Novembro, de muitos cômodos e um grande incômodo – pois o casarão era tido como mal assombrado. Encerrado o “FANTÁSTICO” da Rede Globo a cada domingo, todos corriam desarvorados, atropelando-se, para se confinar nos dormitórios, deixando ligada a TV da sala de estar. Era o invariável momento da aparição de uma diáfana figura feminina, envolta numa túnica alvacenta e com fama de “saliente”, pois surgia da penumbra dos corredores tentando sofregamente abraçar os retardatários. Eu nunca tive receio das coisas do além, mas… pelo sim pelo não, ficava trancado no meu quarto…” (APL, meu discurso de posse).
A capital paraense é conhecida por suas lendas, e o saudoso escritor Walcyr Monteiro as abordou exaustivamente em seu livro “Visagens e Assombrações de Belém” (Smith Editora, 2007) verdadeiro repositório de crenças, lendas e mitos urbanos, incorporadas ao acervo da cultura da Amazônica. Nesse clássico da assombração, a cada arrepiante episódio narrado por Walcyr, vem à mente o quão oportuno se mostra essa expressão, considerando que ninguém é suficientemente corajoso para as coisas do alem.
A língua é o maior legado cultural de um povo e reflete, além de seus traços comportamentais, o modo de viver da sociedade onde é cultivada. Sabemos que alguns aspectos linguísticos estão arraigados ao vernáculo e fazem parte da maneira de falar da população. Não existe possibilidade, ainda que remota, de tentar modificá-los em busca de uma adaptação ao chamado “padrão culto”.
“PERNAS, PRA QUE TE QUERO?” ultraja a gramática porque não existe concordância entre o vocativo “pernas” e o pronome que o retoma (te). Imagine-se em informal roda de conversa, alguém dizendo “PERNAS PRA QUE VOS QUERO?” (ou, “PERNAS, PARA QUE QUERO VOCÊS”?) como seria gramaticalmente correto. Restaria evidente a arrogância intelectual, senão o esnobismo do infeliz interlocutor. Falando nisso, o único que pode usá-la sem medo de errar é o Saci-Pererê, pois tem somente uma perna, conforme a icônica imagem popularizada por Monteiro Lobato, nos idos de 1918. É patente que essa expressão do nosso cotidiano não poderá jamais ser modificada para o “falar culto”, produto raro ao alcance de requintada minoria, pois ela se consolidou exatamente desse modo trivial, destoante das regras e dos círculos literários, fulcrada no linguajar falada pelo povo em geral. Mas não deixa de ser uma curiosidade gramatical merecedora de registro, haja vista que para a maioria, ela passa completamente despercebida.





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