Publicado em: 20 de julho de 2024
Roberta tinha 35 anos. Carregava nas costas uma bagagem de culpas tão pesada que andava curva, com os ombros retraídos para dentro. Todos os dias, ao deitar, doava horas de sono a reavaliar tudo que havia dito durante o dia, letra por letra, como se a cada abertura de sua mandíbula, fizesse explodir a bomba entre seus dentes e língua. A presença da tragédia em sua vida começou quando seus primeiros traços de mocinha se anunciaram e, com eles, castigos. Tudo tão confuso que Roberta passou a achar que virar mulher era punição. Tinha doze anos quando um tio, amigo da família, pegou nos seios que ainda não tinham mamas. Sua mãe avisou que quando ele tivesse em casa, não deveria sair do quarto. Aos quinze, levou seu primeiro tapa. Seu namorado não gostou de um estranho ter parado o carro para dizer o quanto ela era gostosa.
Aprendeu cedo que sua boca, balanço e gargalhadas eram um erro e muito cedo confirmou que sua existência era um perigo. O sorriso, a direção do olhar, a forma como mexia os braços, batom vermelho, o desejo. Não sabia definir o que era da rua, o que era dela, o que era prazer, o que era medo.
Com vinte entendeu que dava para gozar com a dor e aos vinte e cinco, aprendeu a reagir, revidava aos mais agressivos, com a sordidez do que a acusavam. Provocava com o que mais os incomodava, seu corpo em liberdade. O álcool era um grande aliado, pegava nas mãos como um pai mais velho que nunca esteve presente. Ela golpeava bêbada, macho por macho, na confiança que só uma menina com pai defensor ao lado teria. Sendo o abandono uma presença em sua vida, o abandono etílico também vinha de forma visceral e nauseante no dia seguinte. Vivenciava na carne o mal-estar que é habitar seu corpo. E na repetição de
Nunca.
Mais.
Vou.
Fazer.
mergulhava no nó sufocante que alguns chamam de angústia.
Narcisicamente vivia culpada. Tudo era sobre ela. Culpada pela amiga que ficou com seu namorado; culpada por ter dado troco; culpada por ter feito a piada; culpada por ter dormido demais; culpada por ter feito aquela pergunta; culpada porque a conta de luz veio cara aquele mês; culpada por não ter dado esmola; culpada porque a tia chegou tarde na festa do sobrinho; culpada.
Aos poucos, o álcool revelou ser mais um, como todos que passavam em sua vida de forma abusiva e que pareciam apontar sua responsabilidade de ter o tal dedo podre. Mais um, com o agravo de fazer sua imagem refletida no espelho ainda mais cortante: a cara lavada de bêbada que fazia se sentir uma miséria humana – todos eles tinham razão.
Olhava as amigas e se sentia vivendo em performance: como elas conseguem ser assim, alegres e espontâneas? Roberta não se achava. E não via nada em si de brilho. Sequer entendia como alguém podia gostar ou ver qualquer coisa nela que não a casca, aquela casca que tanto lhe colocava em encrencas.
E de tão curva, Roberta enrolou, enrolou, enrolou até virar um caracol. Lenta, molenga, com um casca dura que a protegia, tentando passar imperceptível.
Chegou ao divã assim, sem se reconhecer como uma humana. No começo, apenas ficava ali. Zero palavras, enchia-se de presença. O olho grande da analista a assustava. Ao mesmo tempo, havia alento em ser olhada como gente. Havia novidade em adentrar no desconhecido. Roberta só conhecia seu pântano e se alimentava dele como uma morta viva. Havia algo de familiar e aprisionador no abismo de si mesma. Aos poucos sentia cada contorno dos seus dedos, pernas e braços. Aos poucos passou a balbuciar as primeiras palavras. A corda jogada não era pra se matar e sim pra subir: acorda! Abria seus olhos assustada. Estranhou em saber que palavras explodiam afetos, memórias e que nem tudo era ameaça. Estranhou novas imagens no espelho. Tudo era novo. Tudo era velho. Percebeu que algumas bombas podem ser desativadas e que outras, oportunamente usadas. Entendeu que o corpo que estava em ameaça não eram o dos outros, mas o dela. Contornar seu corpo com palavras a fez esvaziar as pedras da mochila. Podia sair do alerta. Podia respirar com calma, ter pausas e até dormir. Conheceu a leveza nos furos das palavras. Esticou suas costelas, para finalmente tirar os pesos das costas. Não era cura, não era salvação, era uma nova forma de viver. As palavras podiam também ser doces, flutuar como borboletas. E esse era o sonho mais infantil de Roberta, dançar entre borboletas.
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