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Pouca gente sabe que na comunidade de Araí, zona rural do município de Augusto Corrêa (PA), existe um mingau ritual feito de mandiocaba, uma mandioca singular, de cor avermelhada e que só depois de um ano de plantada fornece matéria-prima para essa iguaria que se chama mandicueria, consumida em média duas vezes por ano. Pós-doutor em Antropologia da Alimentação, autor dos livros “Na roça, na mesa, na vida: uma viagem pela trajetória da mandioca, no e além do nordeste paraense”, “Comida Cabocla: uma questão de identidade na Amazônia; desde uma perspectiva fotoetnográfica” e “A Vida Social da Mandiocaba: um ingrediente Amazônico”, o professor doutor Miguel Brito Picanço tem um trabalho maravilhoso de resgate dessa tradição.

Professor efetivo da Seduc e Semec Belém, pesquisador colaborador do Observatorio de la Alimentación da Universidad de Barcelona e membro do Alere, Grupo de Pesquisa em História da Alimentação e Abastecimento na Amazônia/CNPq, e da Associação Brasileira de Antropologia, Miguel Picanço tem foco nos campos da Antropologia Visual e da Antropologia da Alimentação, em particular na comida como patrimônio alimentar do nordeste paraense. Ele compôs um relato precioso acerca da mandicueira, cujo ingrediente primeiro e principal é a calda da mandiocaba, retirada no momento em que o tubérculo é ralado. A mandiocaba é “aguacenta” e é isso que se chama de calda. A massa ralada é disposta no tipiti para espremer até sair o que restou de água.

Em uma grande panela, de uns 70 litros, levada ao fogo a lenha, a calda ferve durante muitas horas. Ao lado, outra panela de menor porte contendo calda de mandiocaba garante a “renova”, que repõe o líquido reduzido pela fervura. Quanto mais renova, mais apurada, avermelhada e doce fica a iguaria. Além das renovas o fogo também é decisivo na construção do sabor e na tonalidade do mingau. A tradição manda inclusive que a lenha seja de ingá, lacre, bauna e muruci do mato, porque são madeiras avermelhadas e os antepassados acreditavam que a cor delas ajudava a definir a da mandicueira. Depois da terceira renova, o mingau é engrossado com dois quilos de goma de tapioca e três quilos de arroz, e então é a hora de dar o ponto, quando ninguém pode fazer qualquer tipo de barulho e pessoas de fora que não estejam desde o começo não podem olhar para a panela e muito menos para o mingau, senão ele desanda. É um dia inteiro de trabalho.

Quando finalmente o mingau fica pronto é degustado, quente ou frio, e quanto mais frio mais doce fica. O professor Miguel Picanço conta que “quando alguém falecia na comunidade de Araí, era costume rezar pela alma do morto por nove dias, o nono dia era reservado para a reza da ladainha e nesse dia “obrigatoriamente” se servia mandicueira para os crentes rezantes. Na atualidade, a reza para a alma do morto continua, porém, são apenas sete dias e não nove como antes, já o costume de servir a mandicueira apagou-se por completo”. Mas ainda é costume vender o mingau durante todo o dia de finados em frente aos cemitérios das cidades e das comunidades rurais do nordeste paraense, assim como fazem os araienses e os bragantinos, que também são famosos pela farinha d’água, a farinha seca, a farinha lavada, a farinha para farofa, a farinha de tapioca, a carimã, a goma, o tucupi e a macaxeira.

Toda a trajetória da feitura da iguaria, desde a colheita da mandiocaba até seu consumo, pode ser observada na narrativa imagética de autoria do Prof. Dr. Miguel Picanço. Confiram as fotos.

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, membro da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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