Publicado em: 2 de novembro de 2024
Pouca gente sabe que na comunidade de Araí, zona rural do município de Augusto Corrêa (PA), existe um mingau ritual feito de mandiocaba, uma mandioca singular, de cor avermelhada e que só depois de um ano de plantada fornece matéria-prima para essa iguaria que se chama mandicueria, consumida em média duas vezes por ano. Pós-doutor em Antropologia da Alimentação, autor dos livros “Na roça, na mesa, na vida: uma viagem pela trajetória da mandioca, no e além do nordeste paraense”, “Comida Cabocla: uma questão de identidade na Amazônia; desde uma perspectiva fotoetnográfica” e “A Vida Social da Mandiocaba: um ingrediente Amazônico”, o professor doutor Miguel Brito Picanço tem um trabalho maravilhoso de resgate dessa tradição.
Professor efetivo da Seduc e Semec Belém, pesquisador colaborador do Observatorio de la Alimentación da Universidad de Barcelona e membro do Alere, Grupo de Pesquisa em História da Alimentação e Abastecimento na Amazônia/CNPq, e da Associação Brasileira de Antropologia, Miguel Picanço tem foco nos campos da Antropologia Visual e da Antropologia da Alimentação, em particular na comida como patrimônio alimentar do nordeste paraense. Ele compôs um relato precioso acerca da mandicueira, cujo ingrediente primeiro e principal é a calda da mandiocaba, retirada no momento em que o tubérculo é ralado. A mandiocaba é “aguacenta” e é isso que se chama de calda. A massa ralada é disposta no tipiti para espremer até sair o que restou de água.
Em uma grande panela, de uns 70 litros, levada ao fogo a lenha, a calda ferve durante muitas horas. Ao lado, outra panela de menor porte contendo calda de mandiocaba garante a “renova”, que repõe o líquido reduzido pela fervura. Quanto mais renova, mais apurada, avermelhada e doce fica a iguaria. Além das renovas o fogo também é decisivo na construção do sabor e na tonalidade do mingau. A tradição manda inclusive que a lenha seja de ingá, lacre, bauna e muruci do mato, porque são madeiras avermelhadas e os antepassados acreditavam que a cor delas ajudava a definir a da mandicueira. Depois da terceira renova, o mingau é engrossado com dois quilos de goma de tapioca e três quilos de arroz, e então é a hora de dar o ponto, quando ninguém pode fazer qualquer tipo de barulho e pessoas de fora que não estejam desde o começo não podem olhar para a panela e muito menos para o mingau, senão ele desanda. É um dia inteiro de trabalho.
Quando finalmente o mingau fica pronto é degustado, quente ou frio, e quanto mais frio mais doce fica. O professor Miguel Picanço conta que “quando alguém falecia na comunidade de Araí, era costume rezar pela alma do morto por nove dias, o nono dia era reservado para a reza da ladainha e nesse dia “obrigatoriamente” se servia mandicueira para os crentes rezantes. Na atualidade, a reza para a alma do morto continua, porém, são apenas sete dias e não nove como antes, já o costume de servir a mandicueira apagou-se por completo”. Mas ainda é costume vender o mingau durante todo o dia de finados em frente aos cemitérios das cidades e das comunidades rurais do nordeste paraense, assim como fazem os araienses e os bragantinos, que também são famosos pela farinha d’água, a farinha seca, a farinha lavada, a farinha para farofa, a farinha de tapioca, a carimã, a goma, o tucupi e a macaxeira.
Toda a trajetória da feitura da iguaria, desde a colheita da mandiocaba até seu consumo, pode ser observada na narrativa imagética de autoria do Prof. Dr. Miguel Picanço. Confiram as fotos.














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