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O Brasil tem as melhores leis do mundo para proteção feminina mas é um dos lugares mais perigosos para mulheres. Há um abismo entre a legislação e a realidade brutal de verdadeiro extermínio, coisificação e negação da mulher como pessoa dotada de vontade e direitos. Nas relações afetivas, a violência se impõe aos poucos. Começa com controle, isolamento e rebaixamento, que minam a resistência da parceira, antes das agressões físicas.  O feminicídio é o capítulo final da escalada.    Homens “acima de qualquer suspeita” estupram, torturam e matam brutalmente suas parceiras. Ser mulher no Brasil é um fator de risco, e se for negra e trans é ainda mais terrível. Os criminosos, invariavelmente, quando são processados (em muitos casos sequer são denunciados), ainda baseiam a defesa na desqualificação da vítima. E assim as mulheres continuam a ser dizimadas, sem amparo policial, muito menos proteção social. Hoje mesmo eu vi o caso de uma mulher marajoara de Breves (PA) totalmente desfigurada pelo marido, que alegou ciúmes. A impunidade reina.

Rompendo esse círculo tenebroso, a juíza Ana Carolina Santana, de Pernambuco, deu imensa contribuição a essa causa ao quebrar o protocolo e ler uma emocionante carta aberta à vítima, antes da sentença do Tribunal do Júri, após julgamento de feminicídio. Que sirva para reflexão de tod@s.

“Querida Samara,

Assim como você eu sou mulher e mãe, mas diferente de você, estou viva.

Estou vivendo essa realidade que nos fere, nos machuca e nos mata todos os dias: a realidade do machismo.

A realidade que nos transforma em objetos, que nos retira a dignidade de ser humano que somos.

Assim como no primeiro julgamento desse processo, não foi fácil para mim mais uma vez ouvir seu pedido de socorro. Penso nos seus filhos, nos seus quatro filhos, dos quais você tanto se orgulhava de sustentar sem ajuda de nenhum homem.

Não foi fácil ver você sendo julgada aqui hoje. “Por que não saiu do distrito de Fátima? Por que não terminou o relacionamento se estava sendo agredida? Por que não ficou na casa quando ele viajou?” Foram tantas as perguntas. Mas infelizmente você não está aqui para responder. E ainda que estivesse, não precisava responder a nenhuma delas.

Porque o mundo em que nós mulheres queremos viver é o mundo que não nos julgue por nossas decisões quando elas não são condizentes com o machismo que assola todos vocês que estão aqui hoje.

Não foi fácil ver situações tão delicadas sobre sua vida pessoal sendo expostas aqui como tentativa de desqualificá-la. Se tomava remédio controlado, se era portadora de borderline, foram alguns dos relatos ditos aqui por algumas testemunhas.

Não importa. Afinal de contas, quem aqui estiver com a saúde mental 100% em dia que atire a primeira pedra, e pode atirar até em mim. Principalmente as mulheres que passam por relacionamentos abusivos e tóxicos.

Eu sou magistrada há oito anos. Já presidi alguns tribunais do Júri, já condenei muita gente, já apliquei penas até maiores que a aplicada no primeiro julgamento desse processo. Mas nenhum processo precisou ser refeito.

Mas nós somos mulheres, né, Samara? Mesmo inconscientemente, é como se a situação na qual somos vítimas precisasse sempre ser refeita para nos culpar. Como se fosse sempre um alerta do “mas será que ela… será que ela não mereceu? Será que não fez por onde?” como forma de justificar todo o ódio direcionado a nós.

Mas hoje, exatamente hoje, 21 de novembro, 9 meses depois do primeiro julgamento, você foi absolvida. Você não teve culpa de nada que te aconteceu. Fique em paz, e descanse em paz.

O egrégio Conselho de Sentença acolheu integralmente a tese do MP e decidiu pela condenação do acusado, nos exatos termos da pronúncia. Pena definitiva fixada em 32 anos de reclusão.”

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, membro da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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