Hoje quando cheguei para trabalhar, de manhã e estacionei o carro ali na Praça da República, atrás do Theatro da Paz, ouvi uma algazarra que vinha de uma das mangueiras. Um grupo grande de periquitos voava, fofocava, ria e comentava algo. Andei alguns metros e mudei de idéia. Entendi. Estavam gritando, reclamando, protestando contra uma equipe da Semma, creio, que derrubava uma mangueira. Aquilo me pegou. O vegetal já estava sem folhas há algum tempo. É desagradável como tratamos mal essas árvores. A impressão que dá é que elas nos atrapalham. Estão sempre como obstáculos. Na ânsia por espaço enchemos de cimento para dar mais passagem, suas raízes, ignorantes de algo muito importante que as mantém de pé. Então devem ter descoberto que as raízes iam ceder e a árvore ia cair. Impiedosamente, ligaram as motoserras.
Pensei que elas deviam me conhecer. Vivi uma vida inteira em frente àquela praça. Criança de colo, de mãos dadas com minha mãe, com a babá, depois a bordo de uma bicicleta, fazendo mil estrepolias. Houve também momentos em que a atravessei, de madrugada, vindo do grupo de estudo para vestibular. No dia em que asfaltaram a avenida, à noite, desci com minha bike, assim como todos os moradores, para passear. Antes, já havia desfilado em 5 de setembro, garbosamente. O Círio passava e passa, claro. Dancei carnaval desfilando pelo Quem São Eles em um momento especial, já que era o autor dos versos do samba de enredo da escola, naquele ano, “Cobra Norato, Pesadelo Amazônico”. Bons tempos. Depois também dancei carnaval no bloco “Bandalheira”. As árvores me acompanhando. Em uma foto antiga, elas estão ainda bem jovens, baixinhas, arrumadinhas. Havia poucos carros e poluição. Em uma época, a calçada ficava colorida entre o verde e amarelo por conta das mangas que caíam. Uma vida inteira passando por ali, reconhecendo-as e vice-versa.
Pensei na tensão e no horror das árvores ao lado, ouvindo a motoserra, percebendo a queda em vários pedaços, para não atrapalhar o trânsito. O pânico. Quando será minha vez? No tronco maior, já no chão, a impressão de uma madeira ainda sadia. As raízes não apareceram. Isso acontece quando o tronco inteiro desaba em uma ventania. Aquele ser enorme, perdendo sua dignidade, sua importância, mesmo que antes, sem folhas, fosse como um minarete, mantendo seu posto em meio ao caos circundante. Não, confesso não ser um ecologista militante. Concordo com todas as opiniões. Olhava do terraço do prédio em que morava e ficava extasiado com o famoso túnel de mangueiras. Do alto, apenas a cobertura, como imensos canteiros em um jardim cercado por montanhas de cimento e ferro. Penso que elas fazem seu trabalho reprocessando oxigênio e têm a difícil missão de nos proteger contra o gás carbônico e que tais. E como devolvemos esse serviço? Desconhecendo. Não se importando. Achando que elas atravancam as vias. Elas caem e o trânsito fica péssimo. Culpamos os serviços com razão. Ah se o velho Lemos soubesse como tratamos as mangueiras que ele mandou buscar na Índia. As autoridades dizem que estão monitorando as mangueiras e identificando as que estão ocas, ou com raízes fracas. Isso devia ter sido feito há muitos anos e continuamente. Olho para o vegetal em pedaços, no chão e penso se isso é jeito de tratar uma senhora de mais de cem anos, possivelmente. O quê, para nós é realmente importante, então? Andamos como se o mundo começasse no dia em que nascemos. Pisamos em ruas sem nos importarmos com quem passou por ali, antes, construiu tudo isso em que vivemos. Hoje, chorei por esta senhora, cheia de dignidade e história, abatida sem pejo. Talvez, pouco a pouco abatida até cair em pedaços, ela tivesse me encarado, pedindo ajuda, que não me atrevi a dar.
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