Cidade do interior, tarde quente e modorrenta, na rodoviária só o padre e o bêbado, ambos esperando o ônibus que os levará à capital. O padre vai em compromisso de trabalho, tem assuntos a tratar com o bispo. O bêbado não lembra bem o que vai fazer por lá, mas mantém as instruções que a mulher lhe deu anotadas numa folha de papel. A visão da batina o faz crer numa paciência que poucos têm tido com ele ultimamente, encorajando-o a puxar conversa:
– Seu Padre, sei não, às vezes acho que a gente peca demais porque não acredita no diabo e não conhece o inferno. Se a gente acreditasse que o capeta existe e tivesse a mínima noção do desconforto que deve haver onde ele mora, talvez fosse mais cauteloso, talvez se preocupasse mais com os deslizes acumulados ao longo da vida, temerosos com a possibilidade de passar a eternidade nas profundezas da terra, na companhia de um bando de degenerados e malfeitores.
– É filho, seu raciocínio tem lógica, mas melhor seria se pensássemos e planejássemos nossos atos objetivando as maravilhas do céu. Buscar conscientemente o céu é bem mais produtivo do que apenas temer o inferno.
– Sei não Seu Padre. Acho que a gente respeita mais aquilo de que têm medo. Pelo menos era assim lá em casa. A gente, vez ou outra, até argumentava com a mãe, punha dificuldade para obedecer o que ela mandava, mas se pelava de medo do pai e cumpria suas ordens sem discutir. Depois, mais adiante, respeitava mais os professores mais brabos e os patrões mais zangados.
– E hoje filho, quem você mais obedece e respeita?
– Minha mulher Seu Padre, que é braba feito o capeta.
O padre ri. O ônibus chega. Ambos embarcam. Gostando do rumo da prosa, confiando que poderia arrebatar aquela ovelha perdida, o padre convida o bêbado para sentar ao seu lado.
– Quer dizer, meu filho, que você obedece e respeita sua esposa porque tem medo dela?
– Medo, medo mesmo, daqueles que a gente tem da polícia, do médico e de visagem eu não tenho não senhor. Respeito e obedeço a patroa porque só quero saber pra onde vou depois que eu morrer. Enquanto não morro é melhor evitar o inferno que ela cria quando se aborrece.
O padre ri novamente e o bêbado completa: – Vai ver, Seu Padre, que é por isso que dizem que o inferno é aqui.
Pensativo, tentando achar uma posição confortável no assento, o bêbado parece pensar alto e distante. – Deve ser grande o inferno, não é seu Padre? Deve ser bem grande pra caber tanta gente.
– Maior é o céu, meu caro, bem maior é o céu.
– Compadre meu, Seu Padre, que é inteligente e estudado, me disse que o inferno é bem grande, que tem vários andares, cada um para receber um tipo de pecador, e que lá no último, o mais fundo de todos, é que mora o tinhoso.
– Seu compadre deve ter lido Dante, filho, deve ter lido a Divina Comédia.
– Comédia, seu Padre? E o inferno por acaso é engraçado?
– Não é isso filho, a Divina Comédia é um livro que relata a jornada do autor ao inferno, ao purgatório e ao paraíso. Segundo o livro, o inferno é realmente bem grande, tem nove círculos, três vales, dez fossos e quatro esferas. Em cada um desses locais são confinadas as almas de determinados tipos de pecadores, e a elas são aplicados diferentes castigos. Os adúlteros, por exemplo, ficam no Vale dos Ventos, Segundo Círculo, e são atormentados dia e noite por um furação interminável, por ventos incessantes que os arrastam pelo inferno. Os gulosos e insaciáveis, por seu turno, ficam no Lago de Lama do Terceiro Círculo, imersos num lodo sujo e espesso, atolados no próprio vômito. Os homens violentos, assassinos, vão para o Sétimo Círculo, para um vale chamado de Vale do Rio Flegetonte, mergulhados no sangue daqueles que mataram.
Percebendo o olhar assustado do bêbado, que a esta altura já não estava mais tão bêbado assim, o padre resolveu continuar.
– Tem também o Oitavo Círculo, onde são presos os fraudadores, aqueles que enganam seus semelhantes. Nele os corruptos ficam imersos num lago de piche fervente e os ladrões são desfigurados por serpentes e répteis monstruosos que atravessam seus corpos para desfigurar seus traços humanos.
– Valei-me Seu Padre, que já estou até assustado, arrependido de ter puxado esse assunto, e olhe que ainda nem chegamos lá onde mora o fedorento, o coisa ruim, o rabudo enganador.
– Ele mora no Nono Círculo, ao lado dos traidores, às margens do Lago das Lamentações, que é formado pelas lágrimas dos condenados e pelos rios de sangue que escorrem do inferno e nele desaguam. Lá Lúcifer, o traidor de Deus, tem três cabeças e passa o tempo a morder Judas, Brutus e Cassius. Mas olhe filho, não se impressione com isso, é apenas um livro, e há outros melhores, especialmente o melhor de todos eles, a Bíblia Sagrada.
– Não estou impressionado Seu Padre, estou é apavorado mesmo. E estou pensando no meu compadre, que deve ter lido mesmo essa tal comédia, sabia disso tudo e não me contou em detalhes.
– Talvez ele não tenho lido até o fim, meu filho, não se zangue com seu amigo, porque para os zangados também há espaço reservado.
– Não é zanga Seu Padre, Deus me livre, é economia de tempo e diminuição de risco. Se eu soubesse disso tudo já tinha até largado a bebida, que não quero nem passar na porta desses círculos e vales, e muito menos cair num desses fossos. Valei-me de novo Seu Padre, e me perdoe pelos meus pecados. Eu bem que lhe disse que a gente peca demais porque não crê no maldito e não conhece o seu território.
– Pois creia meu filho, acredite. E lembre que a maior artimanha do diabo é exatamente nos fazer crer que ele não existe. Afora isso, passe comigo na igreja, confesse seus pecados e receba o perdão de Deus.
O ônibus cumpre o percurso, chega ao destino. Padre e bêbado despedem-se.
Muitos dias passados, o padre sai da sacristia para celebrar a missa do dia. Na primeira fila, de barba feita e cabelo penteado, está o bêbado, desta feita inteiramente sóbrio, ovelha arrebatada. Numa mão a Bíblia, na outra a Divina Comédia.
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