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A popularização de termos médicos, psicológicos e científicos é um fenômeno interessante para a nossa reflexão. Ultimamente, tenho observado o uso frequente da expressão narcisista. É uma forma   de acusação ofensiva ou adjetivação negativa do outro, sobretudo quando se está em posição oposta e crítica a algum comportamento arrogante.

Busquei o verbete narcisista no dicionário da língua portuguesa e no help guide, para não iniciados, como eu.

O Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN) é caracterizado por um padrão persistente de grandiosidade, fantasias de poder ou importância ilimitados e a necessidade de admiração ou tratamento especial. Ao lado do maquiavelismo e da psicopatia, compõe a tríade sombria da personalidade.  É curioso o maquiavelismo não ser tão popular. Talvez seja uma virtude, em tempos de premiação para a canalhice e para a lei de Gerson, cogitei.

Nós podemos pensar que há sempre uma linha nietzscheana entre a fisiologia e a patologia, neste verbete.

Algumas situações para refletirmos sobre o narcisismo:

Capta o momento. Acontece na cidade eterna. Podes olhar para uma tela em branco, absurdamente branca, sem nódoas, silenciosa e soberba: um enigma em zero pixels, zero tecnologia: apenas o tecido esticado, e a inigualável máquina divina, desafiando-o. Então há em uma das mãos uma paleta. Na outra mão, alguns pincéis rústicos. O século é o XVI e o mundo está fervendo e renascendo lá fora. A cidade transpira arte e esplendor. O quarto está repleto de materiais caoticamente dispostos uns sobre os outros; uns ao lado dos outros; uns dentro dos outros. É preciso imprimir na tela o sentimento de um momento histórico: a dualidade, o paradoxal, o contraditório, o duelo de opostos; tensão de síntese da atmosfera barroca.

Então podes visitar a mitologia grega, de onde flui inspiração para falar duas vezes sobre uma auto-paixão fatal: Narciso. Agora estás desafiado a encher a tela de beleza, precisão, contraste e estupefaciência estética  É impossível! É absurdo transpor o mito da beleza catastrófica para o mundo 2D, mas ainda podes simular profundidade.

É impossível captar as linhas do rosto  afrodisíaco  e do corpo Apolíneo para as tintas primordiais; impossível captar fotograficamente a luz refratada na superfície do lago, imitando a física e convidando para o mergulho no lago-espelho. Impossível recriar o mito de Narciso, como se fosses um demiurgo das tintas, a menos que sejas um gênio imortal do Olimpo da arte. Teu nome é Michelangelo Merissi, vulgo Caravaggio.

Tu consegues ver o resultado do trabalho do Narciso de Caravaggio e de suas tintas eidéticas e arrebatadoras sem pensar uau, eu queria ter feito isso?

Subitamente o tempo-espaço viola suas leis e, por alguns minutos, podes estar  invisível e clandestino em uma grande sala silenciosa. As paredes são arrematadas por boiseries francesas, o piso é de madeira polida, o pé direito é alto e se deita por sobre colunas robustas. Há uma luz furtada pelos vitrais das janelas, que vai namorar com os cristais pendentes de um enorme lustre por sobre o piano. As 88 teclas sorriem para ti mostrando lindos dentes alternados de marfim e ébano. Agora vês aquele sujeito um pouco descabelado. Ele é apenas um menino inseguro que precisa extrair beleza e arte daquele seu amigo de cauda longa. Tã tã tã tã, são as primeiras de muitas notas de entrada para uma das mais belas sinfonias já compostas por uma criatura viva. Tudo isto porque o gênio ali envolvido, descabelado e ofegante é o de Beethoven. Teu portal do tempo acaba de se fechar e já podes voltar para o século XXI. Estás assustado porque ainda hoje aquela composição solitária é capaz de emocionar pessoas. Dificilmente uma criatura com audição funcionando seria tão alheia a ponto de nunca ter ouvido as notas de entrada do primeiro movimento da quinta sinfonia.

E se fosses Beethoven?

Te encherias de orgulho?

Eu, sim. Com certeza!

O século é o XXI. O lugar é gigantesco.  Há canhões de luz por toda parte. Há uma ribalta enorme e estás sobre ela, para onde convergem todas as luzes e todas as atenções. Cantas qualquer hit bem reproduzido nas plataformas de streaming enquanto a plateia absolutamente lotada repete a letra da canção.

Todos estão emulados por uma euforia coletiva semelhante à dança húngara, muito também pelo efeito do álcool e de otras cositas más… O ídolo pop performa no palco enquanto o furor da plateia produz ondas de entusiasmo. Nesse estado de arrebatamento coletivo, o ídolo reafirma naquela multidão de fãs a percepção sobre si mesmo, como se ali refletisse, naquele mar de pessoas, sua própria imagem de Narciso, para onde ele se sente tentado a se atirar; por vezes se atira mesmo.

Como reagir à idolatria e à bajulação de um mar agitado de fãs? Às vezes Narciso se afoga de verdade nessas ondas turbulentas.

E tu, o que és?

[Responda isso ouvindo Ego, do Rag’n Bone]

Extremamente talentoso ou perigosamente narcisista?

De Caravaggio e seu Narciso absurdo, possível tolerar um momento nietzschiano, não? De resto, fica o martelo.

Fontes

https://www.helpguide.org/mental-health/personality-disorders/narcissistic-personality-disorder

Além do Bem e do Mal – Nietzsche: Prelúdio a uma filosofia do futuro https://a.co/d/ePknhV2

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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