0

O Brasil, durante séculos, através de sua historiografia oficial, silenciou a polifônica luta dos abolicionistas, centrando a proibição da escravidão na figura da princesa Isabel perante uma perspectiva simplista (para não chamar de racista e elitista). Esta insistência em considerar Isabel como a principal responsável pela abolição teve como claro objetivo embaçar a participação ativa e decisiva de abolicionistas e da população negra, que organizaram-se ativamente pelo fim da escravidão. Ao representar a princesa Isabel como figura redentora, os homens que escreveram a história imprimiram uma escolha política a serviço de interesses específicos para fugirem do reconhecimento de que a abolição foi um processo complexo, envolvendo uma ampla rede de solidariedade e luta por parte de abolicionistas e da população escravizada. Portanto, sustentar a narrativa que a abolição foi um “presente” da monarquia também foi uma forma de desviar, por muito tempo, o foco da ausência de políticas públicas adequadas após a abolição e a falta de reconhecimento dos verdadeiros protagonistas do processo.

Saber quem foram os atores da abolição da escravidão no Brasil é fundamental, porém não significa que Isabel não teve o seu papel na história. Se a monarquia tivesse continuado, ela teria sido a sucessora natural. A princesa serviu como regente do Império em três ocasiões distintas: de 1871 a 1872, de 1876 a 1877, e de 1887 a 1888. Durante sua primeira regência, ela sancionou a Lei do Ventre Livre, que libertava filhos de escravizados nascidos a partir daquela data, e concedeu liberdade a todos os escravos que eram propriedade da coroa e da nação, marcando o início de seu envolvimento direto nas políticas abolicionistas. Na segunda regência, Isabel coordenou os esforços governamentais e sociais para auxiliar em uma grande seca no Ceará. Na terceira, em 1888 assinou a Lei Áurea.

A perspectiva de um terceiro reinado, sob o comando de Isabel, era real, embora pertencesse a um contexto em que mulheres, mesmo as que eram membros da monarquia, não eram preparadas para a política. A Lei Áurea foi claramente utilizada pelos monarquistas que apoiavam sua ascenção como imperatriz para promover sua imagem. Sua assinatura, dois dias após o jornal “O Fluminense”, de Niterói, noticiar que um projeto de lei propondo a extinção da escravidão havia sido votado pela Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado e que sua aprovação poderia ser considerada como certa pois refletiria a vontade nacional pela abolição, transfigurou a princesa – a mesma que assinara a Lei do Ventre Livre em 1871 – em “Redentora”.

O Brasil foi o último país das Américas a proibir a escravidão e os movimentos negros (e toda e qualquer pessoa com um mínimo de bom senso) têm longamente apontado para a necessidade de uma revisão histórica que reconheça os verdadeiros protagonistas deste processo, que não aconteceu da noite para o dia e que foi consequência de muita luta. O Ceará, por exemplo, quatro anos antes, em 1884, já havia se tornado a primeira província a abolir a escravidão, em decorrência da Revolta dos Jangadeiros, liderada por Chico da Matilde e que teve como uma de suas articuladoras Maria Tomásia Figueira Lima, que apesar de ser uma aristocrata foi uma mulher revolucionária e cofundadora da Sociedade das Cearenses Libertadoras.

Nomes como Maria Firmina dos Reis, Adelina, José do Patrocínio, Luiza Mahin e seu filho Luiz Gama, Vicente de Souza, Ferreira de Menezes e Manoel Querino, por exemplo, lideraram inúmeras ações em diversos âmbitos, que efetivamente levaram à culminância da abolição, e ainda são insuficientemente conhecidos e reconhecidos. Restaurar o 13 de maio aos verdadeiros protagonistas não se trata de tentar apagar o papel histórico de uma mulher, mas sim fazer um mínimo de justiça sobre a relevância dos feitos de uma população maioritariamente preta, parda e indígena extremamente injustiçada e silenciada pelos processos históricos oficiais.

Chico da Matilde
Maria Tomásia Figueira Lima
Maria Firmina dos Reis
Adelina
José do Patrocínio
Luiza Mahin
Luiz Gama
Vicente de Souza
Ferreira de Menezes
Manoel Querino
Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

Empresa de navegação cobra quanto quer no Marajó

Anterior

Programação cultural celebra Dia do Ceramista

Próximo

Vocë pode gostar

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *