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O coronel da reserva do Exército Sebastião Rodrigues de Moura – o “doutor Luchini”, “doutor Paulo”, “doutor Tibiriçá” ou “Major Curió” – morreu aos 87 anos, no hospital Santa Lúcia, na Asa Sul, em Brasília, na madrugada desta quarta-feira (17). Mineiro, Curió se tornou tristemente famoso em Serra Pelada, no sul do Pará, pelo extermínio de presos políticos na Guerrilha do Araguaia, durante a ditadura militar, a ponto de, em sua homenagem, ter sido denominado Curionópolis um dos principais municípios daquela que é a maior província mineral do planeta Terra. Curió levou ao túmulo a verdade sobre os jovens estudantes que ele capturou, até hoje oficialmente desaparecidos.

 Em um depoimento inédito à Justiça Federal, aos 77 anos, em segredo de Justiça, na 1ª Vara Federal de Brasília, Curió admitiu à juíza Solange Salgado ter matado dois prisioneiros da Guerrilha do Araguaia no início da década de 70. Curió enviara atestado médico para não comparecer à audiência, mas a juíza recusou e expediu mandado de condução coercitiva e a Polícia Federal buscou Curió em casa. Com a restrita presença de advogados e de familiares das vítimas, o depoimento durou quase doze horas, das 13h30 à 23h. Só tarde da noite o militar confessou os crimes: os estudantes Cilon da Cunha Brum (28 anos de idade na ocasião), o Simão, e Antônio Teodoro de Castro (29 anos), o Raul, foram presos, torturados e assassinados. Sebastião Curió ocultou os cadáveres, que permanecem desaparecidos, 55 anos depois.

Em 13 de outubro de 1973, em São Domingos do Araguaia, o grupo militar comandado por Lício Augusto Ribeiro Maciel, o “Major Asdrúbal”, emboscou os militantes do PCdoB André Grabois, João Gualberto Calatrone e Antônio Alfredo de Lima, enquanto eles estavam levantando acampamento. No dia seguinte, acompanhados por um mateiro (guia civil), os militares enterraram os corpos em valas abertas em outro sítio de São Domingos do Araguaia. Entre agosto de 1974 e 1976, as ossadas foram removidas e novamente ocultadas em locais ainda desconhecidos, durante a “Operação Limpeza”, que encobriu os vestígios das ações de repressão à dissidência política no Araguaia. Sebastião Curió era o único a ter conhecimento dos lugares onde foram sepultadas as ossadas.

No processo nº 0006231-92.2012.4.01.3901, que tramita na Justiça Federal em Marabá, o MPF acusa Sebastião Curió por sequestro qualificado e maus tratos contra cinco militantes capturados durante a repressão à guerrilha do Araguaia na década de 1970 e até hoje desaparecidos, mas Curió conseguiu no TRF-1 o trancamento da ação. O recurso do Ministério Público Federal não obteve sucesso.

Lício Augusto Ribeiro Maciel era major-adjunto do Centro de Informações do Exército. Depois de trinta anos em silêncio, ele contou sua versão da história ao jornalista paraense Luiz Maklouf Carvalho, que publicou o livro “O Coronel Rompe o Silêncio” (Editora Objetiva, 224 páginas, R$ 34,90). O relato é impressionante, dramático e revelador, e ajuda a reconstruir um dos episódios mais sombrios da história do Pará e do Brasil.

Planejada e organizada pelo PCdoB, a guerrilha do Araguaia resistiu de 1972 a 1975, desafiando o Exército, numa tática que pretendia, a partir da criação de “comitês populares”, formar um amplo movimento camponês, capaz de derrotar a ditadura. Durante esse período, o Exército mobilizou cerca de cinco mil militares, numa das maiores movimentações de tropas do País. Depois de duas operações fracassadas em 1972, houve uma terceira ofensiva, em outubro de 1973, com o apoio das Polícias Militares dos Estados da região e das outras Forças Armadas.

Ex-agente do Serviço Nacional de Informação (SNI), ex-membro do Conselho de Segurança Nacional, braço direito do ex-presidente da República João Batista Figueiredo, homem de confiança do general Newton Cruz, primeiro chefe do garimpo de Serra Pelada, ex-deputado federal pelo PDS, partido de apoio ao regime militar, coronel da reserva e ex-prefeito de Curionópolis, Sebastião Curió Rodrigues de Moura chegou ao sudeste do Pará na década de 1970. Tinha carta branca para agir. Em entrevista à revista IstoÉ em 2008, contou como enxergava os erros táticos do Exército: “Eles (os guerrilheiros) conheciam a floresta e a tropa militar colecionava muitos erros, como movimentar 300 homens ao mesmo tempo, roupas inadequadas, combatentes não adestrados e falta de rádios de comunicação. Até homens da guarda palaciana, que nem sabiam o que era selva, estavam lá”.

Curió chegou à região disfarçado, numa veraneio vermelha, junto a mais quatro companheiros, se apresentou como funcionário do Incra e só o presidente do órgão sabia sua verdadeira identidade. A primeira parada foi em Xambioá, à época um amontoado de casebres de madeira e barro, com menos de quatro mil moradores, às margens do rio Araguaia. “Marco Antônio Luchini”, “doutor Paulo” e “doutor Tibiriçá” foram alguns pseudônimos que usou para se aproximar dos posseiros. A missão era acabar com a guerrilha do Araguaia, tendo como retaguarda a Polícia Federal e o Exército.

À medida em que os militantes do PCdoB eram dizimados, o poder de Curió se multiplicava e se confundia com o próprio Estado.  Comandou, por sete anos, entre 1976 e 1983, com mão de ferro, o garimpo de Serra Pelada. “Quem fala muito morre” e “inimigo bom é inimigo morto”, são algumas das frases que cunhou.

Curió foi acusado pelos sequestros de Maria Célia Corrêa (Rosinha), Hélio Luiz Navarro Magalhães (Edinho), Daniel Ribeiro Callado (Doca), Antônio de Pádua Costa (Piauí) e Telma Regina Cordeira Corrêa (Lia), todos capturados pelas suas tropas entre janeiro e setembro de 1974 e, após terem sido levados às bases militares coordenadas por ele e submetidos a grave sofrimento físico e moral, nunca mais encontrados. 

Em 1976, ele participou da “Operação Limpeza”, que sumiu com os corpos e ossadas de guerrilheiros mortos na região de Castanhal da Viúva, Bacaba, São Geraldo, São Domingos, Brejo Grande e Palestina. Os restos mortais eram conduzidos para a sede do antigo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), em Marabá, em sacos amarrados com cordões. Os sargentos Santa Cruz e Ribamar participaram ativamente dessas atividades. 

“A gente não se sente só traumatizado, mas se sente vítima… Porque a gente nem sabia o que estava acontecendo. Eles [os militares do alto escalão] diziam que eram guerrilheiros financiados por Cuba, pela China, treinados por outros países para virem tomar o Brasil, era essa a informação que nós tínhamos dos comandantes generais. Então, a gente ia fazer aquilo com orgulho, pensando que tava defendendo o Brasil de uma invasão estrangeira. A gente ia pro tudo ou nada, eles diziam: se eles tomarem o País, a tua família vai ser sacrificada. Aquilo era uma maneira deles levantarem o brio do soldado, a moral do soldado.” O desabafo é do soldado Dorimar, que lutou na Guerrilha do Araguaia, na região que engloba São Geraldo e Marabá, no Pará, e Xambioá, no Tocantins, também conhecida como Bico do Papagaio. De um lado, os guerrilheiros lutavam contra a ditadura militar; de outro, o Exército dizia defender a Pátria. A população, entre o fogo cerrado, foi ameaçada, coagida e muitas vezes torturada.

Em 1966, integrantes do PCdoB, divergindo frontalmente da postura do Partido Comunista Brasileiro, começaram a se instalar no ‘Bico do Papagaio’. Alguns, como o célebre Osvaldão, haviam recebido treinamento na China. Os futuros guerrilheiros, a maioria com boa formação escolar, foram aos poucos se instalando em pequenos municípios como São Domingos do Araguaia, São Geraldo do Araguaia, Brejo Grande do Araguaia, Palestina do Pará, Xambioá e Araguatins. Surgiram como compradores de terras, comerciantes, trabalhadores rurais. Conquistaram a afeição dos moradores locais, que os chamavam de ‘paulistas’. Faziam atendimentos médicos, davam aulas e, assim, tentavam incutir consciência política nos humildes habitantes das comunidades. Não demorou muito, começaram a chamar a atenção dos militares. Entre 1972 e 1974, as Forças Armadas fizeram três investidas destinadas a acabar com o foco. Foram escorraçadas na primeira, recuaram estrategicamente na segunda, e, depois de uma das maiores operações de espionagem e infiltração da história, na última partiram para o extermínio.

Do lado guerrilheiro calcula-se que 98 pessoas atuaram diretamente, na luta armada ou trabalhando na logística. Umas vinte eram da comunidade local. Do lado oposto, pelo menos cinco mil agentes, entre policiais militares, federais, civis e da Polícia Rodoviária Federal. O saldo foi um banho de sangue.

O depoimento do padre Robert de Villecourt é impactante. “Sebastião Curió se apresentou em Brejo Grande como sendo um comprador de terra. Visitou várias fazendas na área que depois passou a se chamar “OP 3”. Ele tinha outro nome. Quando começou a operação de “caça” aos “terroristas”, passou a ser conhecido como Major Curió. Eu morava em São Domingos do Araguaia, desde o dia 5 de janeiro de 1972, quando ouvi pronunciar esse nome a primeira vez. O povo convidava a gente para celebrar missa ou batizar as crianças. Quando começava a celebração chegavam muitos carros do Exército que paravam na frente da capela ou da casa onde estávamos. Curió mandava reunir o povo e fazia distribuição de presentes para as crianças ou de alimento. O povo, por interesse ou por medo, deixava a capela e os religiosos terminavam a celebração sozinhos. Curió explicava ao povo que havia dois tipos de padres: os “ortodoxos”, que seriam os verdadeiros, e os padres comunistas que apoiavam os terroristas. Ele se apresentava como católico praticante, de comunhão diária. Convidava o capelão militar que vinha de Belém para celebrar e mobilizava o povo e todas as crianças das escolas da área. Ele estimulava a delação. Um vizinho tinha obrigação de vigiar o outro e denunciar algum contato com os padres. Assim, um dia, uma família amiga nos convidou para celebrar a missa. Quando chegamos lá não tinha ninguém. Vimos uma mulher escondida no quintal e nós a chamamos. Ela chegou, chorando, nos suplicando de sair o mais breve possível porque o Curió tinha dito que quem recebesse esses padres comunistas perderia o seu lote e seria preso e torturado. No dia 1º de junho de 1972, membros do Exército chegaram à casa das irmãs, em São Domingos, e me pediram para acompanhá-los, junto com a Irmã Maria das Graças. Fomos de noite para o lugar chamado “a Metade”, onde nos interrogaram e olharam umas fotos. Queriam nos identificar com os que eles chamavam de “terroristas”. No dia seguinte, levaram-nos, a irmã, eu e um lutador de circo, para a Palestina. Um tenente chamado Alfredo me acusou de ser comunista e me bateu de maneira muito violenta durante umas horas. Ele não bateu na irmã, mas ameaçou, dizendo que em Araguatins tinha homens especializados em tortura de mulheres. Fomos amarrados que nem porcos e jogados num jipe. Fomos até Araguatins. Quando viram o carro do bispo que estava de passagem foram nos esconder numa outra rua. À noite nos levaram de volta para São Domingos. O pior foi depois: durante dois ou três anos fui vítima de denúncia, humilhação pública…uma tortura não física, mas psicológica, insuportável. Se ele mesmo praticou a tortura ou assassinou pessoas não posso afirmar. Sei que mais de 300 pessoas foram torturadas, algumas não voltaram mais para casa e outros ficaram loucos”.

Todos os sequestros ocorreram durante a denominada Operação Marajoara, última fase dos combates entre Exército e militantes. “Nessa etapa houve o deliberado e definitivo abandono do sistema normativo vigente, pois decidiu-se claramente pela adoção sistemática de medidas ilegais e violentas, promovendo-se então o sequestro ou a execução sumária dos militantes. Não há notícias de sequer um militante que, privado da liberdade pelas Forças Armadas durante a Operação Marajoara, tenha sido encontrado livre posteriormente”, relata o MPF nos processos judiciais.

Como bem registra o professor de Antropologia da UFPA, Rodrigo Peixoto, no projeto “Arquivo da Memória Social da Guerrilha e da Guerra que Veio Depois”, que coordenou, “a guerrilha é um episódio seminal na história da região, no entanto não está incluída nos currículos escolares das escolas públicas, de modo que sua memória, embora viva, continua reprimida socialmente.” O Grupo de Trabalho Tocantins coletou mais de 80 horas de entrevistas em áudio e vídeo com ex-combatentes e moradores da região do Araguaia. Segundo o MPF, aqueles crimes – sequestro, homicídio e ocultação de cadáver – não são beneficiados pela prescrição nem pela Lei de Anistia, de 1979, por serem atos de lesa-humanidade e crimes permanentes, continuados, comprovadamente cometidos no contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população civil brasileira, promovido com o objetivo de assegurar a manutenção do poder usurpado em 1964, por meio da violência, tendo como agravantes motivo torpe, mediante recurso que tornou impossível a defesa dos ofendidos, emprego de tortura, abuso de autoridade, abuso de poder e violação de dever inerente a cargo/ofício, e contra ofendidos que estavam sob a imediata proteção da autoridade.

O general presidente João Baptista Figueiredo foi quem nomeou Curió comandante de Serra Pelada. Ainda candidato, Figueiredo foi a Curionópolis fazer comício, e lá foi recebido por trinta mil garimpeiros. A participação direta do general presidente e o uso da máquina de publicidade oficial nas eleições nunca haviam sido tão intensos desde o golpe de 1964. Até então, limitavam-se a pronunciamentos em convenções partidárias. Para vencer eleições, contavam com a legislação eleitoral arbitrária, a censura à propaganda da oposição e a despolitização de boa parte do eleitorado. Em 1982, a legislação ficou ainda mais abusiva, com o estabelecimento do voto vinculado, que obrigava o eleitor a votar em candidatos do mesmo partido para todos os cargos, e a manutenção da censura à propaganda partidária, mas o descontentamento popular e o crescimento das oposições eram evidentes.

Em 1982, Curió foi eleito deputado federal pelo Pará e, em 2000, prefeito de Curionópolis, assumindo o mandato em 2001. O chefão do grupo de extermínio na guerrilha do Araguaia (1972-1975) só foi preso uma vez, e por pouquíssimo tempo, em Brasília, por porte ilegal de arma. O flagrante aconteceu durante execução de mandado de busca e apreensão em sua residência, requerido pelo Ministério Público Federal e concedido pela 1ª Vara da Justiça Federal em Brasília, quando foram apreendidos documentos, um computador e uma arma de fogo. O MPF tentava localizar o paradeiro de corpos de militantes políticos que participaram da guerrilha.

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, membro da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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