A história produz lacunas, injustiças e silenciamentos sobre a importância de grandes mulheres para o mundo do conhecimento e para a compreensão dos ciclos dessa mesma história. O corte patriarcal da história do Ocidente deve ser evocado sempre que desejamos entender como se perpetra violência e apagamentos da memória e da celebração de mulheres geniais, vitimadas pela violência, como Hipátia de Alexandria, de quem não se sabe a data precisa do nascimento, talvez na segunda metade do século IV d.C, por volta do ano 355, filha do matemático Theon. Sabemos que faleceu em meados de março, no ano de 415, da era cristã.
Estamos no século V da era cristã, no domínio do império romano, quando a manutenção do poder dependia de que os cidadãos aceitassem uma conjuntura de sujeição à força das elites que administravam o estado, sob o controle de uma teia de intrigas e de ameaças emanadas de oficiais imperiais, elites locais, líderes religiosos e oficiais militares que controlavam um cavalo selvagem personificado nas cidades do império romano, naquele tempo.
A Alexandria onde viveu Hipátia era dual. Em algumas áreas, propriedades ricas e cheias de espaços públicos seguros e confortáveis contrastavam com outras áreas perigosas, sem saneamento e violentas.
Tramas políticas envolvendo pequenos núcleos de poder, corrupção e favorecimentos, compunham a cena de um sistema político precarizado, porém, aparentemente propenso a manter a ordem pública e o controle da elite sobre o povo. As elites políticas sobreviviam desse arranjo, por meio de favorecimentos e da exploração do pequeno e do grande poder.
Alexandria convulsionou politicamente após o conflito entre Cirilo, patriarca de Alexandria, (Cirilo estava envolvido em políticas implacáveis para eliminar as influências pagãs em Alexandria), e Orestes, governador do Egito romano. Cirilo e seus associados situaram os problemas políticos locais nas audiências regulares que Orestes tinha com uma filósofa chamada Hipátia.
Filha de um proeminente matemático alexandrino, Hipátia foi a principal pensadora de Alexandria por quase trinta e cinco anos. Os filósofos não tinham autoridade formal no mundo romano, mas alta autoridade intelectual. Hipátia era influente e aconselhava as autoridades em assuntos sobre política, como era comum entre os filósofos prestigiados.
Hipátia era uma intelectual dedicada ao conhecimento. Ela se mantinha à parte do jogo de favores e da política local e se interessava pela vida política apenas na medida em que suas ações tornavam as cidades governadas de forma mais justa. Seus conselhos poderiam reduzir a tensão e apaziguar os ânimos acalorados.
Seu status como filósofa, então, deu às audiências de Hipátia com Orestes um notável poder simbólico em uma cidade que estava lutando para se manter unida. Sua presença ao lado de Orestes fez o governador parecer a parte razoável na disputa. Na linguagem da antiguidade, Cirilo parecia ser um provocador cujo aspecto infantil agora ameaçava a própria estabilidade da cidade.
Os cristãos leais a Cirilo viram algo muito mais nefasto nas audiências de Hipátia com Orestes. Eles começaram a murmurar que Hipátia havia enfeitiçado o governador e usado sua magia para mantê-lo apartado de Cirilo. As mulheres. Sempre bruxas…
Para os apoiadores do patriarca de Alexandria, o sistema havia parado de funcionar porque Hipátia havia calado Cirilo e seus apoiadores de participar dos debates em Alexandria. Ela precisava ouvir a raiva dessas pessoas diretamente — precisava recuar para que a cidade pudesse funcionar novamente.
O pensamento de Hipátia
Hipátia acreditava na matemática e nas leis da razão para a explicação do mundo, como filósofa neoplatônica. Isto despertava a antipatia de cristãos e de pagãos, seus adversários. Ainda assim, era impensável que um membro da elite romana fosse confrontado furiosamente pela massas. Isto reforça uma hipótese: Hipátia era mulher, por isso a violência desenfreada. Hipátia era vítima de uma autoridade poderosa na cidade: Cirilo.
Hipátia teve uma educação centrada em ciências matemáticas. Seu pai, que era matemático, foi seu predecessor. Além disso, estudou filosofia. Sobretudo a obra de Platão. Ela adquiriu alto domínio da linguagem, da gramática e da filosofia em sentido amplo. Hipátia também dominava a retórica, mesmo em um tempo em que mulheres eram proibidas de advogar em um tribunal ou de fazer performances retóricas públicas. Hipátia Foi a primeira mulher conhecida por estudar e ensinar matemática, astronomia e filosofia.
A morte de Hipátia
Em março de 415, um membro da igreja alexandrina chamado Pedro reuniu uma multidão de apoiadores de Cirilo – de quem atuavam como longa manus – para que confrontassem Hipátia de forma violenta. Poderíamos pensar aqui um recorte de gênero e violência, considerando que Hipátia era mulher, em dois meios predominantemente masculinos: a filosofia e a política.
A temperatura política do mundo romano estava elevada. As multidões se reuniam o tempo todo e os humores estavam alterados. Por vezes, eles vandalizavam propriedades. Em casos raros, eles até matavam. No entanto, era excepcional que um membro da elite romana fosse agredido fisicamente por uma multidão.
Na maioria das vezes, multidões furiosas com um membro da elite desabafavam sua fúria e então se dispersavam sem nunca chegarem particularmente perto do seu alvo. Mas essa multidão que confrontava Hipátia era diferente. Ou essa turba premeditou o crime com um senso de propósito incomumente violento ou teve uma sorte incomumente astuta em encontrá-la ensinando em uma sala de aula pública ou viajando em uma das ruas de Alexandria. Podemos reforçar aqui a hipótese de gênero para entendermos a sanha violenta de uma multidão enfurecida contra uma filósofa respeitada e de origem aristocrática.
Em algum dia do mês de março do ano 415 da era cristã, quando Alexandria e o império romano estavam em decadência, Hipátia foi alcançada no espaço público e fora dos muros altos das propriedades, assim, ao alcance de uma multidão enfurecida. Ela foi arrancada da sua carruagem, arrastada até uma igreja e torturada até a morte.
Rasgaram suas roupas e o seu corpo com fragmentos de cerâmica, arrancaram seus olhos, arrastaram seu cadáver pelas ruas de Alexandria e então queimaram seus restos mortais.
Cristãs e não cristãs viram o assassinato truculento de Hipátia como um episódio brutal, sem que ela tivesse culpa pelo cenário político de conflagração no mundo romano, que se devia a circunstâncias alheias pelas quais Hipátia não tinha responsabilidade.
A morte de Hipátia foi chocante e assustadora. Ela se tornou o símbolo de um período de decadência da cultura, repleto de divisões ideológicas, fanatismos e obscurantismo. Ao longo dos 1.600 anos seguintes, autores, poetas, pintores, cineastas e acadêmicos celebraram ou condenaram Hipátia e a era que ela veio a representar.
Leconte de Lisle, o poeta parnasiano, escreveu um belo poema, Hipátia, sobre ela:
“No declínio das grandezas que dominam a terra,
Quando os cultos divinos, sob os séculos dobrados,
Retomando o caminho solitário do esquecimento,
Observam seus altares relâmpagos desabarem;
Quando o carvalho de Hellas a folha vagueia
Parátios desertos apagam o caminho,
E que além dos mares, onde abunda a sombra espessa,
Para um sol jovem flutua a mente humana;
Sempre deuses derrotados abraçando a fortuna,
Um grande coração os defende do destino ofensivo:
O amanhecer dos novos dias o fere e o incomoda,
Ele segue no horizonte a estrela de seus ancestrais.
Para um destino melhor do que outro século nasce
E de um mundo exausto se afasta sem remorso:
Fiel ao sonho feliz onde floresce sua juventude,
Ele ouve a poeira dos mortos tremer.
Os Sábios, os heróis se levantam cheios de vida!
Os poetas em coro sussurram seus belos nomes;
E o Olimpo ideal, que um canto sagrado convida
No marfim senta-se nos brancos Partenões.
Ó virgem, que, de uma parte do seu vestido piedoso,
Cobris o túmulo augusto onde seus deuses estavam adormecidos,
De seu culto eclipsado sacerdotisa harmoniosa,
Casto e último raio separado de seus céus!
Eu te amo e te saúdo, ó virgem magnânima!
Quando a tempestade abalou o mundo paterno,
Você seguiu no exílio este Édipo sublime.
E você o envolveu com um amor eterno.
De pé, em sua palidez, sob os sagrados pórticos
Que povos ingratos abandonaram o enxame,
Pythonisse acorrentado a tripés proféticos,
Os Imortais traídos pulsavam em seu peito.
Você os viu passando pela nua em chamas!
De ciência e amor eles ainda te beberam;
E a terra estava ouvindo, do seu sonho encantado,
Cante a abelha Ática entre seus lábios dourados.
Como um jovem lotos crescendo sob o olhar dos sábios,
Flor de sua eloquência e equidade,
Você estava fazendo, na noite menos escura das idades antigas,
Resplenda seu gênio através de sua beleza!
O grave ensino das virtudes eternas
Derramou-se do seu lábio no fundo dos corações encantados;
E os galileus que sonhavam com suas asas
Esqueceram seu Deus morto por seus amados Deuses.
Mas o século levava essas almas rebeldes
Que um vínculo muito frágil seguiu seus passos;
E você os viu fugir para as terras prometidas;
Mas você, que sabia de tudo, não os acompanha!
O que te importava, ó virgem, um tal delírio?
Você não tinha esse ideal procurado?
Vai! Nesses corações perturbados seus olhos sabiam ler,
E os Deuses benevolentes não esconderam nada de você.
Ó criança sábia, tão pura entre suas irmãs mortais!
Ó nobre frente, sem mancha entre as frentes sagradas!
Que alma tinha cantado em lábios mais bonitos,
E queimado mais claro em olhos inspirados?
Sem nunca rocear seu vestido imaculado,
As sujeiras do século respeitaram suas mãos:
Você estava andando, com os olhos voltados para a vida estrelada,
Ignorante dos males e crimes humanos.
O vil galileu bateu em você e amaldiçoou você,
Mas você caiu maior! E agora, infelizmente!
A respiração de Platão e o corpo de Afrodite
Partimos para sempre para os belos céus de Hellas!
Durma, ó vítima branca, em nossa alma profunda,
Em sua mortalha virgem e cinto de loteria;
Dormir! A impura feiura é a rainha do mundo,
E perdemos o caminho de Paros.
Os Deuses estão em pó e a terra é muda:
Nada falará mais em seu céu deserto.
Dormir! Mas, vivo nele, canta no coração do poeta
O hino melodioso da Santa Beleza!
Só ela sobrevive, imutável, eterna.
A morte pode dispersar universos trêmulos,
Mas a Beleza explode, e tudo renasce nela,
E os mundos ainda rolam sob seus pés brancos!”
Ela foi difamada como uma bruxa, marcada como um ícone feminista e enaltecida por sua história com o conhecimento. Ainda assim, a história de Hipátia é mais conhecida pela forma violenta como foi morta do que por seu legado filosófico e matemático, que devemos conhecer e preservar, além de condenar a violência da sua morte.
A história e o corpo assacados de Hipátia devem ser rememorados para que a violência real e simbólica, o fanatismo e a intolerância religiosa, não vitimem novamente nenhuma mulher.
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