0

Antes de se ouvir o chiado das sandálias de Sócrates pelas ruas de Atenas, a liberdade já era um tema candente. Ela segue inquietando filósofos, juristas e políticos. Diverge-se sempre no momento de definir exatamente o que é a liberdade; eis que se trata de um conceito interpretativo e histórico.

A liberdade é uma das estrelas mais brilhantes do firmamento do direito e da política, e desfila com trajes elegantes em todas as passarelas dos discursos midiáticos. Ela é muito popular e eloquente. Todos prometem garanti-la e respeitá-la.

Para compreender o sentido da liberdade nesta reflexão, é preciso antes distinguir a liberdade natural da liberdade civil. Pensaremos aqui a liberdade como um dos componentes da dignidade da pessoa humana nas sociedades civis organizadas, após o advento das revoluções burguesas (liberdade dos modernos).

A liberdade civil é também um conceito interpretativo de liberdade, pelo que todos os intérpretes  pretendem melhor defini-la conforme sua posição em relação ao objeto da interpretação. Dizer a última palavra sobre a liberdade é a causa pela qual há tantas divergências sobre o melhor sentido para compreendê-la: pretender exauri-la ou aprisioná-la dentro de um tempo ou conceito rígido.

A liberdade civil deve assumir o valor de um componente da dignidade humana, a par da igualdade.  Assim, a liberdade se fragmenta em espécies de direitos liberais atribuídos à pessoa humana: liberdade religiosa, liberdade de expressão política e liberdade física (relacionada ao devido processo legal). Ainda estamos falando sobre a liberdade dos modernos, consagrada nas constituições e garantida como direito.

A liberdade de expressão é a mais semântica de todas as expressões da liberdade no Ocidente atual e, certamente, políticos, civis e juristas tendem a divergir muito sobre ela, quanto mais se esforçam  por defini-la.

A liberdade de expressão está para além da liberdade de expressão política e a violação à expressão dessa liberdade constitui censura, pois viola o direito à independência ética individual; exceto em casos extremos, nos quais o exercício desse direito possa induzir individual ou coletivamente à promoção de discursos de ódio ou violação à esfera de outros direitos fundamentais.

É preciso compreender, antes de avançar em qualquer definição de liberdade de expressão, que a independência ética não contempla o direito à incitação à violência. Por exemplo: no Brasil, a liberdade de expressão não contempla o direito à intolerância religiosa e ao ódio racial contra grupos minoritários. Nos EUA, o exercício da liberdade de expressão não abrange a promoção de discursos de ódio racial.

A limitação judicial de certos discursos políticos não viola o direito ao exercício da independência ética e da liberdade de expressão, como um direito civil, pois, em sociedade civil, o exercício de nenhum direito é absoluto. Há, portanto, limites jurídicos e políticos para o exercício justificado da liberdade de expressão. 

A justificação para o exercício da liberdade de expressão e de seus limites, nas sociedades ocidentais,  deverá ser feita judicialmente e caso a caso,  quando em concorrência com outros direitos fundamentais, e só deverá ser limitado por decisão judicial fundamentada, eis que integra o conjunto dos direitos civis fundamentais em nossas democracias.

Alguns de nós divergimos sobre o excesso, no exercício do direito à liberdade de expressão, quando analisamos a dinâmica desses direitos no mundo digital. A Internet tem-nos levado ao clamor regulatório global, sobretudo quando esfumam-se as fronteiras da soberania dos Estados na selva digital.

É por essa razão que os organismos internacionais já se movimentam pelo esforço regulatório do exercício da liberdade de expressão na esfera global, pela via cogente. Essas tratativas irão vigorar e ter força de lei entre os signatários, desde que não violem suas constituições, em países dualistas e constitucionalmente rígidos. No Brasil,  reforçará nossos marcadores regulatórios domésticos.

Os tribunais superiores dos países signatários de tratados internacionais em matéria de regulação digital deverão se encarregar de analisar casos específicos e aplicar o direito internacional e o direito constitucional domésticos caso a caso e de formular entendimentos via jurisprudência.

Essas decisões deverão conter racionalidade suficiente para compor distinções e standars capazes de guiar as instâncias inferiores e a administração pública com rigor técnico e clareza linguística, no sentido de que seja possível estabelecer uma via comunicativa possível entre o sentido jurídico-político e a prática do exercício da liberdade de expressão.

É lógico que os grupos interessados em afrouxar os limites da regulação digital se esforcem por acionar todos os mecanismos de controle de poder não-estatal para ampliar o sentido da expressão, no meio digital, da liberdade, a pretexto de exercício pleno da liberdade política de expressão, rotulando com a etiqueta vermelha da censura interpretações divergentes, mas o direito é dialético e a sociedade global debaterá abertamente o tema, sobretudo para coibir as fake news e o discurso de ódio.

No extremo dessa tensão de forças estarão os tribunais e os governos internos, concertando essa sinfonia para equalizar o direito e a prática dinâmica do etos digital.

Na síntese dessa tensão de forças estará a sociedade civil concreta, para quem o conteúdo das mídias globais e o limite do exercício de direitos já é produzido em grande escala e prêt-à-porter para uso e consumo.

Liberdade civil, na atualidade, pressupõe tensão político-jurídica, fricções de interesses de grupos antagônicos e, na cena das big techs, parece performar muitos jogos de poder. No centro da tensão de forças,  nós, os passageiros deste trem da história,  a transpor mais uma fronteira para a experiência com a criação de conteúdos e com a manifestação de pensamento: a revolução da inteligência artificial.

Fontes:

A liberdade dos antigos comparada à dos modernos https://a.co/d/dSco6Hu

Isaiah Berlin – Pluralismo e dois conceitos de liberdade https://a.co/d/e1WI4Z2

A virtude soberana: A teoria e a prática da igualdade https://a.co/d/4XheP6I

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

PCdoB entrega proposta de ação a prefeito eleito

Anterior

Mais coisas entre o céu e a terra…

Próximo

Você pode gostar

Comentários