Josette Lassance atinge a maturidade no gênero conto (O Prédio; No Último Desejo a Carne é Fria; Galeria Dos Maus) no livro Os Cincos Felizes, e apresenta densidade de conceitos, e força na habitual energia lírica das imagens.
Lassance assenta sua lente hiperbólica em cenários não decorativos, onde objetos podem ser, por exemplo, símbolos-fetiche: carros, um trem, um prédio, borboletas…
Outras imagens podem vir de lembranças reinventadas da infância, que se misturam à Memória de Belém do Pará, nostálgica, sempre áurea e decadente. Um paradoxo arraigado no inconsciente coletivo da cidade. A cidade natal, no entanto, é vista da perspectiva do crítico e do voyeur, distante de regionalismos, visão que brinca com os estereótipos de cidade sentimental, de herança estética afrancesada (como o próprio nome de batismo da escritora), e até mesmo provoca escatologia (Enigmas Fotográficos, Noites de Marfim, A Última Chuva em Belém, respectivamente). Com efeito, o espírito e a constituição das cidades, reais e fictícias, são personagens importantes na obra total.
Afora a índole dos mitos urbanos, os temas recorrentes são caros à época: o fluxo e as fronteiras do tempo; a saturação dos sentidos e a dissolução de valores na pós-modernidade; os “amores líquidos”; a velocidade; hiper-realidades e tecnologia como recurso perverso ou transcendente; a visão nostálgica do “futurismo” como ideia já datada de futuro; o vazio existencial.
Outro ponto a destacar é a diversidade de estilos para o gênero, que perfaz desde a prosa-poética (Anjos de Plástico) às histórias “cinematográficas” (Roadie Movie em Sax Night, Policial em Encontro Marcado). Caso de A Última Chuva em Belém, conto apocalíptico à Blade Runner. A decisiva influência do cinema se nota pelo uso deliberado de clichês (imagens, ações, palavras) do way of life norte americano, além da própria compleição narrativa.
O recurso qualifica Lassance como “autora pop” que parece ter em mente que até mesmo o icônico Ezra Pound decretou a morte do intelectual com o advento do cinema, para o bem ou para o mal. A ironia da aparente contradição em relação à literatura canônica é patente.
Em outras palavras, Lassance reflete sobre o lugar do Homem contemporâneo, na literatura e no mundo. Exemplo disso é o conto Supermercado, que remete incidentalmente ao poema de Allen Ginsberg Um Supermercado na Califórnia, no qual o poeta da Contracultura trava uma conversa imaginária com outro americano, Walt Whitman, reconhecidamente um vate patriota. Dentro de um supermercado imaginário, Ginsberg discorre sobre os desdobramentos da visão mítica fundadora da América, cristalizada no ideal do “Sonho Americano”. E indaga, entre reverente, irônico e confuso, sobre as implicações da ideologia que implica o modelo capitalista: “… aonde vamos nós, Walt Whitman?”…
O supermercado californiano e ginsberguiano, ora um confortável ethos temporal, ora um inquietante limbo histórico, dá lugar ao supermercado de Os Cinco Felizes, substituindo famílias saudáveis por personagens indiferentes e sem relevo, figurantes que passeiam por corredores a perseguir produtos como caçadores arrefecidos, sonâmbulos. Aqui, a tensão insinuada por Ginsberg se exacerba. E a consumação da crise econômica, por exemplo, dá mostras da atualidade dos motes da Contracultura, e Lassance parece estar atenta ao fato, avançando com o questionamento, mostra que hoje a sedimentada ideologia prescinde de uma moral que a respalde. Deste modo, perguntaria então a autora: “aonde vamos nós Allen Ginsberg?”. Para a entropia, para uma visão pessimista da História? Veremos a seguir, que uma possível resposta pode ir além de maniqueísmos.
Na dialética estabelecida pelos contos, entre os quais alguns de teor niilista, uma tese ou síntese intrigante está no próprio título (que também nomeia um dos contos do livro): Os Cinco Felizes. Este que alude aos contos de fada, isto é, faz menção a uma narrativa mais “ingênua” e lúdica, menos intelectualizada e racionalista.
No conto homônimo, um homem traça um “projeto de cidade futura”, porém idílica. Na metáfora a necessidade da emergência de esperança, harmonia apolínea, e por outro lado, paradoxalmente ingênua. O conto é uma ode do valor intrínseco da capacidade de criação/construção do Homem, e, positivamente, a crença no avanço como seu processo fundante. A contradição está na possível viabilidade desse avanço, que significaria um retorno à pureza, à natureza. Pode o tempo retornar como pensavam os orientais, cada vez mais ocidentalizados? Impasses do conto: Apolo e o Dioniso polarizam, intermitentemente, e o conteúdo crítico colide com o mito do progresso.
Após o retrato da crescente desumanização em O Prédio, outro tipo de cidade e (por que não?), de modelo de desenvolvimento, ascende na cabeça da personagem, suscitando a dúvida: escapista sonhador, ou visionário? Essa ambiguidade quanto ao futuro, fundamentada na História, e posta à prova na precisão da metáfora, dá mostras da atualidade da escritora. Aonde vamos, Allen Ginsberg? Aonde vamos, JosetteLassance?
O desdobramento da conturbação conceitual engendrada na obra está neste conto cujo narrador é um “arquiteto” que projeta uma cidade melhor, uma cidade possível ainda que imaginária. Do mesmo modo que a história universal é um resultado não apenas de construções cognitivas bem delineadas, mas de fantasmagorias (fantasmática) legitimadas e tornadas consensuais. Tudo surge do mito e retorna para o mito.
Ou seja, ainda que precariamente, eleva-se o Homem em si mesmo. O artista em si mesmo. Por que “nesses inexatos dias, há córregos, onde atravessam todos os homens perdidos, e eles decidem que sua impermanência no subúrbio do universo seja preenchida de autoconfiança, e referenciada por anônimos deuses”.
Desconstruir a história: “sonho cavalar: o cavalo, depois de comer a carroça, contempla o horizonte” (Henri Michaux). Reconstruir a história. Passionalmente, catalisar o horizonte quando obscuro. Acender os sentidos e os nortes do Homem pela intrínseca fantasia. Torná-la real. Essa é a função da arte.”
(Prefácio
de Karina Jucá, escritora e professora de Literatura, no livro de contos de Josette Lassance, OS 5 Felizes, que será lançado nesta sexta, às 21h, no bar da Valda. Todos estão convidados.)
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