Publicado em: 7 de junho de 2025
*em memória de Christian Piat
Em Caiena, durante iniciativa de abertura e cooperação regional promovida pelo primeiro-ministro francês Michel Rocard, em fins do século passado, quando provoquei a um veterano diplomata do Quai d’Orsay contando-lhe a lenda galibi do casamento do príncipe Cayenne, filho do rei Ceperu; e a princesa Belém, filha do rei Brasil; como resposta ouvi a sentença em epígrafe. Diz a sabedoria popular que morar na filosofia faz a diferença entre habitantes da Terra, mas habitar o tempo, creio eu, é um exercício de paciência recomendado pelas elites a súditos inquietos por crônicas desigualdades.
A Amazônia, periferia da Periferia segundo o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, recebeu surpresa a decisão superior de Paris, em meio a pompas da viagem de estado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a seu homólogo francês Emmanuel Macron, há muito esperada por inúmeros migrantes brasileiros “clandestinos” de Belém e Macapá na Guiana. Assim como parte do empresariado brasileiro norte-nordestino que se interessa na isenção de visto no passaporte para entrar mais fácil na Guiana francesa: uma aparente mudança de perspectiva de Paris diante das infindáveis complicações de vizinhança na fronteira do Oiapoque agora, inclusive, no contexto do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas. Por que as duas chancelarias não pensaram disso antes, em 125 anos do laudo arbitral que encerrou a Questão do Amapá?
Dentre as diversas tentativas de boas relações regionais franco-brasileiras, tive a honra de organizar no Consulado do Brasil em Caiena a primeira missão comercial do estado do Pará a Martinica, Guadalupe e Guiana com apoio das respectivas associações comerciais anfitriãs, levando o professor Nelson Ribeiro, então Secretário de Estado de Comércio, Indústria e Mineração, frente à delegação. Muito contribuiu para sucesso de eventos tais como este cidadão francês, nascido em Caiena, amigo dos brasileiros de Caiena, Christian José Piat, vereador da municipalidade e influente pedreiro-livre do Grande Oriente de França. Como neste caso, há inúmeros eventos pouco conhecidos na história das relações regionais do Norte brasileiro com as Guianas e o Caribe. A classe social e política crioula de Caiena sempre desejou a normalização das relações de vizinhança. No passado, famílias guianenses e brasileiras tratavam-se frequentemente como “primos” e costumavam viajar a Belém do Pará para assis o Círio de Nazaré; não raro recordavam fatos antigos relacionados à ocupação de Caiena por tropas paraenses, de 1809 a 1817. Segundo a lenda, na hora da despedida soldados e membros da população local choraram a separação: afinal de contas, em oito anos de convivência entre recrutas indígenas e pretos libertos da tropa de ocupação luso-brasileira e famílias locais de escravizados foi, naturalmente, tempo bastante para deixar prole.
Nesta tradição de amizade entre brasileiros nortistas e guianenses tivemos o pioneiro do protocolo de cooperação subnacional de vizinhança regional celebrado entre a Associação de Municípios do Arquipélago do Marajó (AMAM) e a Associação de Prefeitos da Guiana Francesa, em 1996; celebrado pelo presidente da Associação e prefeito do município de Santa Cruz do Arari, Fernando Lobato; e o deputado, presidente do Conselho de Administração da Guiana e prefeito municipal de Sinnamary Elie Castor: no âmbito deste uma delegação de prefeitos e vereadores guianenses veio a Belém, Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arari com fito expresso de visitar o Museu do Marajó, cuja história havia chegado a Guiana através de turistas e dos esforços do Consulado do Brasil em melhorar a imagem da comunidade brasileira local. Foi uma tentativa de fomentar o turismo regional, sobretudo na ilha do Marajó.
Reciprocamente, a parte brasileira visitou a Guiana com uma delegação de prefeitos e vereadores da região de integração Marajó acompanhada pelo diretor-geral do Museu do Marajó, padre Giovanni Gallo; o representante do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), arquiteto Paulo Chaves; representante do Museu Paraense Emílio Goeldi, arqueólogo Marcos Pereira Magalhães; e o coordenador do Campus da UFPA em Soure, professor Ricardo Teixeira Barros.
Aquilo foi, deveras, uma Semana Brasileira na Guiana. Nunca dantes os guianenses habituados a ver os brasileiros de maneira negativa, viram coisa igual, graças inclusive o Grupo Folclórico Nuaruaques que abrilhantou a presença marajoara na terra natal do cacique Galibi Ceperu, contando com apoio institucional do Consulado do Brasil em Caiena, então sob chancela do saudoso Cônsul Wamberto Hudson Ferreira, que inovou a prática consular e melhorou sensivelmente a instalação do consulado com aquisição de imóvel próprio. Durante a visita, o presidente Elie Castor pediu ao padre Gallo que fizesse projeto de museu semelhante ao do Marajó, em Cachoeira do Arari; para a cidade de Sinnamary, pedido aceito em princípio.
Infelizmente, o assunto caiu no esquecimento devido ao falecimento súbito do deputado Castor em meio a processo talvez politicamente motivado para abortar o crescente protagonismo independentista, ou autonomista do deputado guianense além do permitido pela metrópole. Ele sonhava com um centro de pesquisa tropical em Sinnamary, por isto talvez injustamente levado à prisão na França metropolitana onde ele veio a falecer por ataque cardíaco conforme circulou na época. Pelo lado marajoara, também o pioneiro protocolo morreu sem foguete e sem bilhete esquecido com a morte de Giovanni Gallo e, também o falecimento do prefeito de Santa Cruz do Arari, Fernando Lobato. Portanto, deveras, é preciso habitar o tempo…
A sofisticada burocracia do Quai d’Orsay na ordem externa combina com a ordem interna do inflexível Ministério de Ultramar onde antigos usos e costumes ainda parece lembrar da colonialidade expulsa da Indochina e, por fim, está sendo defenestrada da África também. Em 2004, o amigo doutor Adenauer Góes, presidente da hoje extinta Companhia Paraense de Turismo (Paratur), em 1998, havia me convidado a ser chefe de gabinete na empresa mista passando assessor institucional em seguida onde fiquei por oito anos. Tempo de publicar meus ensaios “Novíssima viagem filosófica”, na Revista Iberiana (1999) e “Amazònia Latina e a Terra sem Mal” (2002), este último levado pelo meu saudoso e fraterno amigo Maurice André Gey chegou às mãos do famoso ministro da Cultura de François Mitterrand, Jack Lang. Um ano depois, em Paris, Adenauer Góes e eu estamos nos Países Baixos e na França tratando da, então, futura Feira Internacional de Turismo da Amazônia (FITA), inaugurada em Belém do Pará, em 2004.
Adenauer visitou Jack Lang para o convidar a conhecer o Pará. A situação geográfica do Estado do Pará não é das melhores para vender no mercado internacional de turismo. Além do custo de transporte aéreo, as pessoas confundiam o estado do Amazônas, com a Amazônia, capital Manaus… Apenas um pequeno ponto no mapa-múndi assinalando “I. Marajó” parecia livrar o estado do Pará do anonimato global. Como todo mundo sabe, um marajoara quando quer se mostrar fala de cerâmica marajoara, Dalcídio Jurandir, açaí, búfalos… Quanto mais se esse propagandista fala francês com sotaque crioulo da Guiana francesa… Quem acreditaria? O superstar Lang a desembarcar no aeroporto de Soure recebido com euforia pelo prefeito Tonga ao ritmo do carimbó, no Natal de 2005? Jack e Monique Lang pareciam maravilhados… Depois do almoço, reunião com o bispo Dom Azcona e a comunidade de pescadores de Soure, o tradutor caboco a se virar como podia. O encontro memorável entre o ministro da Cultura francês e o vaqueiro Juvêncio da fazenda Tapera, o ministro queria conhecer um pajé e o vaqueiro: “diga pra ele que não tem mais, hoje eles só querem isto (fazendo gesto de pecúnia com suas mãos enormes de preto Bijogó). No dia seguinte, o casal francês, dois assessores vindos de Paris, o baixinho Maurice, guia de turismo, seguranças e este caboco que vos fala a caminho da fazenda-hotel que no passado distante foi terra indígena Joanes, fomos batizados pela chuva do rio Camará. No dia seguinte de volta a Salvaterra, o dilúvio dos campos de Cachoeira acabaria com a festa cancelando a ida a Cachoeira do Arari para conhecer o museu do Padre Gallo e ver o chalé de Dalcídio Jurandir… Helicóptero no chão, todo mundo de cara fechada em meio à torre de Babel da incomunicação.
Toda história tem uma sombra… Então, ouvindo a notícia da queda da obrigação de visto para entrar na Guiana francesa eu me lembrei da famigerada Operação Rebraca (Repatriamento de brasileiros de Caiena) no arquivo morto da diplomacia dos dois países. O Brasil é o maior país da CPLP e a francofonia namora a lusofonia. A Guiana francesa tem pés na Amazônia, cabeça na Europa e o coração na África: um “carrefour” de comunidades ainda em processo de integração, com diferentes etnias da China, Vietnam, Laos, Índia; Antilhas, Metrópole, brasileiros, surinamenses e outras. Pátria da negritude, com o poeta Léon Damas, companheiro de Aimé Cesaire, da Martinica; e de Léopold Sédar Senghor, do Senegal. Muitos escreveram sobre as Guianas, inclusive a Guiana brasileira que foi no longo passado colonial a Guiana portuguesa. E o Marajó faz parte desta complexa área geopolítica amazono-caribenha, no maior arquipélago fluviomarinho do planeta.
A ilha das Guianas do geógrafo francês Eliseu Reclus, “grande oval insular” do brasileiro Raja Gabaglia formada pelo rio Orenoco, litoral atlântico até o delta-estuário do rio Amazonas passando pelo Golfão Marajoara a montante até o encontro d’água do Amazonas com o Rio Negro e subindo o canal de Cassiquiare para sair pelo Orenoco fechando o círculo. Amapá, Marajó e Baixo-Amazonas são a Guiana brasileira. Todas as Guianas são regiões amazônicas fazendo parte do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) e da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), que tem sua sede multilateral em Brasília; exceto a Guiana francesa visto seu status dependente da República Francesa e da União Europeia. É segredo de Polichinelo a ambição gaulesa para ingressar na OTCA, mormente agora com fortes indícios de petróleo e gás na costa do Amapá e foz do rio Amazonas.
No entanto, a lembrança da famigerada REBRACA (sigla de “Repatriamento de Brasileiros de Caiena”), em 1974, deportação em massa de brasileiros indocumentados no território ultramarino francês, que teve consentimento e apoio operacional do governo federal do Brasil, constitui um calo na história recente das relações diplomáticas Brasil-França.
A França das liberdades abriu as portas da vizinha Guiana à mão-de-obra barata, aliciando através de gatos tupiniquins trabalhadores do Amapá e Pará, contratados por supostos patrões de nacionalidade francesa (não raro, naturais da própria Guiana ou da Guadalupe e Martinica), no norte do Brasil. Esta foi a maior parte de operários para construção da base de lançamento de foguetes em Kuru. Em Marajó, por exemplo, a notícia de grandes canteiros de obra na Guiana circulou ligeira a par do contrabando de café em troca de uísque, automóveis “cotia” e chinelas “japonesas”. As trocas culturais foram intensas, sobretudo na música como atesta a composição “Porto Caribe”, de autoria de Paulo André Barata e Ruy Barata. Mas, o El-Dorado durou pouco e assim que terminaram os trabalhos da construção civil começou a etapa técnica entregue a especialistas europeus. Então, aqueles trabalhadores sem qualificação profissional tornaram-se indesejáveis no país vizinho.
Desempregados, voltaram às ocupações de costume na caça, pesca, derrubada de floresta para pastagem e extração de ouro… Então, Paris pressionou Brasília a buscar de volta aquela gente seminômade, que desde sempre percorre sem descanso o Norte e Nordeste brasileiros, antes que o governo francês esgotado certo prazo, cuidasse ele mesmo de deportar os já chamados “clandestinos”, outrora vizinhos muito bem-vindos.
Eu queria me candidatar a Cônsul Honorário de uma utópica República Democrática da Guiana, todavia não tenho mais idade suficiente para habitar o tempo que seria preciso.
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