Publicado em: 18 de junho de 2025
Alfredo, Dalton, Leopold, Paulo… deambulações.
Nesta segunda-feira, 16 de junho, celebrou-se o Dia de Alfredo, a versão paraense do Bloomsday, que a literatura celebra como o dia de Leopold Bloom – o personagem central do romance Ulisses, do escritor irlandês James Joyce. Nas mais de 500 páginas do romance, Leopold Bloom deambula na cidade de Dublin, encontrando pessoas, lugares, criaturas e alegorias. Nesse sentido, o Bloomsday é um dia de deambulações, de viver literariamente a cidade, qualquer que seja ela.
Alfredo, o personagem, talvez alter-ego, do maior dos escritores paraenses, Dalcídio Jurandir, é, essencialmente, um deambulador. Ele e, também, Dalcìdio. Pelo olhar de Alfredo, Dalcídio vê e narra a Amazônia, particularmente esses espaços amazônicos que sintetizam a história e os conflitos sociais da região, o Marajó e a cidade de Belém do Grão-Pará.
Foi muito boa a comemoração do Dia de Alfredo, este ano, em Belém. Soube de vários eventos, dentre pequenos e caseiros e os mais ampliados. Teve o dia de Alfredo da Academia Paraense de Letras, para o qual a Franssinete Florenzano me avisou e me convidou – e eu nunca perco a oportunidade de escutar o que o Paulo Nunes tem a dizer, sobre qualquer coisa – mas não pude ir. A Mayra Bentes me convidou para ir na casa dela, em Icoaracy, onde leriam Dalcídio e sairiam caminhando num passeio por lá; mas, também não pude ir.
Não pude ir, simplesmente, porque estava deambulando.
Estava no avião, entre Curitiba e Belém, deambulando. Deambulando porque escrever tem a ver com deambular. Tal como ensinam Bloom, Alfredo, Joyce, Dalcídio Jurandir e muitos outros. Dia 14 de junho, dois dias antes do Dia de Alfredo, eu estava deambulando por Curitiba, tendo em mente tanto o vindouro Dia de Alfredo como o fato de que, naquele dia, o grande Dalton Trevisan completaria 100 anos de idade, se vivo estivesse – e quase esteve, porque faleceu no ano passado, aos 99 anos de idade.
Pensando nele, caminhei várias horas por Curitiba. Na memória dos seus textos, andei pela cidade que ele, sempre discretamente, desvelou. A Rua XV, assombrada pelo Vampiro de Curitiba; a praça Tiradentes, perto de onde a Polaquinha recebia seus clientes; a ladeira da Ordem, onde ocorrem algumas das “novelas nada exemplares”. Fui seguindo de memória. Tive a sorte de ter um pai apaixonado pela obra de Dalton Trevisan, que tinha todos os seus livros em casa e que me instigava a ler esse grande autor.
Recordo que li um livro atrás do outro, entre meus 14 e 16 anos. Li Trevisan antes de ler Joyce e bem antes de ler Dalcídio. E, igualmente bem antes de Dalcídio, li outro desses grandes curitibanos, Paulo Leminsky. Os dois autores reconhecidos pela concisão. Pela impressionante concisão. De longe, daqui de Belém, ficava pensando no quanto essa gente era diferente de mim, de nós. Nada, a meu redor, era possivelmente conciso. Mais tarde, também compreendi o quanto tudo aquilo era diferente de Dalcídio, na sua escrita tão barroca…
Estava pensando nessas impressões quando, em Curitiba, caminhei até a alameda Doutor Muricy, no centro de Curitiba, onde Dalton Trevisan passou os últimos quatro anos de vida. O endereço não é simples. No mesmo prédio residiram, em épocas diferentes – Paulo Leminski, Alice Ruiz, esposa de Leminsky e grande autora de hai-kais e a igualmente grande poeta Helena Kolody. Vizinhos que estavam separados pelo tempo, mas próximos pela literatura – e pelo mesmo endereço.
Muitas outras simbologias se associavam a esse prédio. Primeiramente, ele fica bem perto da Biblioteca Pública do Paraná. Nas proximidades, há a Praça Tiradentes, a Catedral de Curitiba e um dos muitos murais de Poty Lazzarotto (o curitibano que é maior artista gráfico da cultura brasileira). Ah, e não longe (deambulei até lá), fica a Casa das Bolachas, frequentada diariamente por Trevisan, que já tinha o seu pedido decorado pelo pessoal que trabalhava lá: um singelo bolo de laranja com café com leite. E, isso, a meio caminho, 400 metros apenas, até o antigo casarão da Rua Ubaldino do Amaral, onde Dalton Trevisan viveu por 65 anos.
Amigos de Curitiba, por sinal, me informaram que, nos tempos em que morava lá, Trevisan mantinha as janelas da casa – voltadas para a calçada – sempre fechadas – o que contribuía para a mística criada em torno da sua figura reclusa.
Curitiba é uma grande cidade literária. Suas ruas são cheias de autores que admiro. E, para não ficar somente nos muito conhecidos, preciso falar sobre aquela moça dos cavalos, Júlia Raiz. Embora nascida em São Paulo, Júlia é uma agitadora cultural de Curitiba. Uma autora feminista que escreve ficção e que utiliza o ensaio literário como estratégia pedagógica.
Mas deixem que mude de autor, embora pensando na obra da Júlia, para falar de Joyce. Foi outro autor muito importante da minha juventude – mas, ao contrário de Trevisan, não por influência de meu pai, ainda que meu pai tivesse, em casa, toda a sua obra traduzida. Meu pai tinha todos os livros de Joyce, mas não gostava dele. Intrigado com essa equação, fui lê-lo. Lembro de ter ficado muito comovido com o “Retrato do artista quando jovem” e que considerei “Dublinenses” como uma das grandes aulas de literatura que tive na vida. Depois disso fui para o famoso Ulisses, e minha leitura foi tão caótica quanto a obra. Optei por ir saltando entre os capítulos, achando isso bem mais coerente do que a opção de fazer uma leitura linear. Acho que não li o livro, mas também acho que o li. Depois, li muito a respeito dele. E o reli. Mas faz mais de 30 anos que não o abro de novo, aguardando algum chamado.
Ah, e é preciso considerar meu encontro com o Finnegans Wake, mas como já falei sobre isso em outra crônica, não vou delongar. Continuo deambulando.
Retorno a Alfredo. Igualmente havia, em casa, os livros de Dalcídio Jurandir. Não todos, mas boa parte deles. Meu pai falava de Jurandir com reverência. E, uma vez, se bem lembro, comentou, penso que longamente, a respeito de como Jurandir lhe lembrava Joyce, de como era dúbia a terceira pessoa da escrita deles. Devida ter uns 15 anos quando tentei ler “Belém do Grão-Pará”; regressei. No ano seguinte, “Passagem dos Inocentes” foi leitura obrigatória no Colégio. Li por obrigação; mas fiquei profundamente impressionado. A densidade do texto, o barroco do popular amazônico… Iniciei a leitura do Ciclo do Extremo Norte: Chove…, Três casas…, Marajó… Anos depois, reli tudo de novo e quando fui morar na França, em 1999, levei comigo um único livro de ficção, retirado da biblioteca do meu pai: “Chove nos campos de Cachoeira”, o Dalcídio Jurandir n 1. Era como um amuleto…
Alfredo, Dalton, Leopold, Paulo… deambulações. Não sei bem sobre o que estava falando por aqui, acho que sobre os livros e as leituras do meu pai. Talvez, sobre as minhas próprias leituras. Deambulo. Evito o termo “flano”, ou “flanar”. No meu modo de ser, eu não flano, eu deambulo. Deambulo entre as ficções e as autoficções. Entre as minhas leituras, as leituras do meu pai e as demais, todas as demais, leituras. Deambulo entre minhas memórias de leitura e as memórias de minhas conversas, com meu pai, sobre literatura.
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