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O Ministério Público Federal ajuizou ação penal, ontem, contra dois militares da reserva do Exército por crimes cometidos durante a Guerrilha do Araguaia. Lício Augusto Ribeiro Maciel – o “Major Asdrúbal” – é acusado pelos homicídios dos militantes do PCdoB André Grabois, João Gualberto Calatrone e Antônio Alfredo de Lima, além da ocultação dos cadáveres das vítimas. Sebastião Rodrigues de Moura – o “doutor Luchini” ou “Major Curió” – foi denunciado pela ocultação dos cadáveres. Para o MPF, trata-se de homicídios qualificados, por terem sido praticados à emboscada e por motivo torpe. Outros agravantes é que os crimes foram cometidos com abuso de autoridade e violação a deveres inerentes aos cargos dos militares. A ação, que tramita na Justiça Federal em Marabá, requer a condenação ao pagamento de quantia equivalente à indenização paga aos familiares das vítimas, a ser atualizada durante o processo. Outro pedido é da perda dos cargos públicos, com o cancelamento das aposentadorias e a devolução de medalhas e condecorações recebidas. 

Os assassinatos a que se refere a ação aconteceram em 13 de outubro de 1973, em São Domingos do Araguaia, no sudeste do Pará. O grupo militar responsável pela execução era comandado por Lício Maciel e emboscou os militantes enquanto eles estavam levantando acampamento em um sítio. Todos os fatos relatados na denúncia estão comprovados por documentos e inúmeros depoimentos prestados por diversas testemunhas ao MPF e a outras instituições. Foram também citados depoimentos dados por militares e pelo próprio Lício Maciel. Ele descreveu assim a primeira execução: “Os meus companheiros, que chegavam, acertariam o André, caso eu tivesse errado, o que era muito difícil, pois estava a um metro e meio, dois metros dele”. Outra testemunha ocular relata que: “foram pegos de surpresa, não tendo tempo para reação … o Exército chegou atirando de metralhadora”. 

O crime foi cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado no golpe de 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime e garantir a impunidade dos autores de homicídios, torturas, sequestros e ocultações de cadáver”, acusam os procuradores da República Tiago Modesto Rabelo, Ivan Cláudio Marx, Andréa Costa de Brito, Lilian Miranda Machado, Sérgio Gardenghi Suiama e Antônio do Passo Cabral, da Força Tarefa Araguaia, constituída pela Procuradoria Geral da República. 

Conforme o relato do MPF, sob a orientação de Lício Maciel, no dia seguinte às mortes um grupo de militares acompanhado por um mateiro (guia civil) enterrou os corpos em valas abertas em outro sítio de São Domingos do Araguaia. Entre agosto de 1974 e 1976, as ossadas foram removidas e novamente ocultadas em locais ainda desconhecidos, durante a “Operação Limpeza”, que encobriu os vestígios das ações de repressão à dissidência política no Araguaia. Entre outros, a coordenação dessa operação estava sob responsabilidade de Sebastião Curió, apontado como um dos poucos que tem conhecimento dos lugares onde foram sepultadas as ossadas. “Nessa operação, Sebastião Curió foi o responsável por coordenar a retirada dos corpos das covas e locais nos quais originariamente foram deixados, posteriormente enterrando-os ou de alguma forma ocultando-os em locais diversos, até então não conhecidos”, registra a denúncia. 

Em outro processo judicial, em agosto de 2012 (proc. nº 0006232-77.2012.4.01.3901, na Justiça Federal em Marabá), o MPF-PA já denunciou Lício Maciel pelo sequestro de Divino Ferreira de Sousa, o Nunes, capturado e ilegalmente detido pelo Exército também em 13 de outubro de 1973. Em novembro de 2013 o “Dr. Asdrúbal” requereu ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), em Brasília, a rejeição da ação. O pedido foi aceito em dezembro de 2014. O MPF recorreu da decisão. Em outro processo na Justiça Federal em Marabá (proc. nº 0006231-92.2012.4.01.3901, de março de 2012), o MPF acusa Sebastião Curió por sequestro qualificado e maus tratos contra cinco militantes capturados durante a repressão à guerrilha do Araguaia na década de 1970 e até hoje desaparecidos, mas Curió conseguiu no TRF-1 o trancamento da ação. O recurso do Ministério Público Federal não obteve sucesso. Agora, tenta levar o caso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF). 

Lício Augusto Ribeiro Maciel era major-adjunto do Centro de Informações do Exército. Depois de 30 anos em silêncio, ele contou sua versão da história ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho, que publicou o livro “O Coronel Rompe o Silêncio” (Editora Objetiva, 224 páginas, R$ 34,90). O relato é impressionante, dramático e revelador, e ajuda a reconstruir um dos episódios mais sombrios da história recente do Pará e do Brasil.
Planejada e organizada pelo Partido Comunista do Brasil, o PC do B, a guerrilha do Araguaia resistiu de 1972 a 1975, desafiando o Exército, numa tática que pretendia, a partir da criação de “comitês populares”, formar um amplo movimento camponês, capaz de derrotar a ditadura. Durante esse período, o Exército mobilizou cerca de cinco mil militares, numa das maiores movimentações de tropas do País. Depois de duas operações fracassadas em 1972, houve uma terceira ofensiva, em outubro de 1973, com o apoio das Polícias Militares dos Estados da região e das outras Forças Armadas.
Foi quando o major Lício Augusto Ribeiro, o “Dr. Asdrúbal”, e seu grupo mataram cinco guerrilheiros. Ele também foi ferido com um tiro no rosto – 
marca que carrega até hoje – disparado por uma guerrilheira que, em consequência disso, foi fuzilada. O livro revela, em detalhes, a violência e a crueldade que marcaram essa época. 

Lício foi o militar que mais matou na guerrilha do Araguaia. No livro de Luiz Maklouf, ele revela a participação do general Nilton Cerqueira, comandante da operação que matou Carlos Lamarca no sertão da Bahia, no município de Brotas de Macaúbas, em 17 de setembro de 1971. Cerqueira confirma as declarações e relata sua atuação na repressão aos guerrilheiros do PCdoB em entrevista inédita a Maklouf. Lício comandou, também, o grupo que prendeu o ex- presidente nacional do PT e ex-deputado federal José Genoíno e diz que ele não sofreu tortura na mata, informação confirmada pelo próprio Genoíno em entrevista ao autor em janeiro de 2004. 

O livro tem, ainda, depoimentos inéditos de militares sobre a guerrilha do Araguaia, como o coronel Aluízio Madruga e os generais Álvaro Pinheiro e Arnaldo Braga. “O Coronel Rompe o Silêncio” aponta nomes de vários oficiais que atuaram na guerrilha, entre eles Wilson Romão, que foi diretor da Polícia Federal do governo Itamar Franco, e Taumaturgo Sotero Vaz, ex-comandante militar da Amazônia. 

Ex-agente do Serviço Nacional de Informação (SNI), ex-membro do Conselho de Segurança Nacional (CSN), braço direito do ex-presidente da República João Batista Figueiredo, homem de confiança do general Newton Cruz, primeiro chefe do garimpo de Serra Pelada, ex-deputado federal pelo PDS, partido de apoio ao regime militar, coronel da reserva e ex-prefeito de Curionópolis, município cujo nome o homenageia, Sebastião Curió Rodrigues de Moura chegou ao sudeste do Pará na década de 1970. Tinha carta branca para agir. Em entrevista à revista IstoÉ em 2008, contou como enxergava os erros táticos do Exército: “Eles (os guerrilheiros) conheciam a floresta e a tropa militar colecionava muitos erros, como movimentar 300 homens ao mesmo tempo, roupas inadequadas, combatentes não adestrados e falta de rádios de comunicação. Até homens da guarda palaciana, que nem sabiam o que era selva, estavam lá”. 

Curió chegou à região disfarçado, numa veraneio vermelha, junto a mais quatro companheiros, se apresentou como funcionário do Incra e só o presidente do órgão sabia sua verdadeira identidade. A primeira parada foi em Xambioá, à época um amontoado de casebres de madeira e barro, com menos de quatro mil moradores, às margens do rio Araguaia. “Marco Antônio Luchini”, “doutor Paulo” e “doutor Tibiriçá” foram alguns pseudônimos que usou para se aproximar dos posseiros. A missão era acabar com a guerrilha do Araguaia, tendo como retaguarda a Polícia Federal e o Exército. 

À medida em que os militantes do PCdoB eram dizimados, o poder de Curió se multiplicava e se confundia com o próprio Estado.  Comandou, por sete anos, entre 1976 e 1983, com mão de ferro, o garimpo de Serra Pelada. “Quem fala muito morre” e “inimigo bom é inimigo morto”, são algumas das frases que cunhou.

Sebastião Rodrigues de Moura é acusado dos sequestros de Maria Célia Corrêa (Rosinha), Hélio Luiz Navarro Magalhães (Edinho), Daniel Ribeiro Callado (Doca), Antônio de Pádua Costa (Piauí) e Telma Regina Cordeira Corrêa (Lia), todos capturados pelas suas tropas entre janeiro e setembro de 1974 e, após terem sido levados às bases militares coordenadas por ele e submetidos a grave sofrimento físico e moral, nunca mais encontrados.  

Em 1976, ele participou da “Operação Limpeza”, que sumiu com os corpos e ossadas de guerrilheiros mortos na região de Castanhal da Viúva, Bacaba, São Geraldo, São Domingos, Brejo Grande e Palestina.
Os restos mortais eram conduzidos para a sede do antigo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), em Marabá, em sacos amarrados com cordões. Os sargentos Santa Cruz e Ribamar participaram ativamente dessas atividades.  

A gente não se sente só traumatizado, mas se sente vítima… Porque a gente nem sabia o que estava acontecendo. Eles [os militares do alto escalão] diziam que eram guerrilheiros financiados por Cuba, pela China, treinados por outros países para virem tomar o Brasil, era essa a informação que nós tínhamos dos comandantes generais. Então, a gente ia fazer aquilo com orgulho, pensando que tava defendendo o Brasil de uma invasão estrangeira. A gente ia pro tudo ou nada, eles diziam: se eles tomarem o País, a tua família vai ser sacrificada. Aquilo era uma maneira deles levantarem o brio do soldado, a moral do soldado.” O desabafo é do soldado Dorimar, que lutou na Guerrilha do Araguaia, na região que engloba São Geraldo e Marabá, no Pará, e Xambioá, no Tocantins, também conhecida como Bico do Papagaio. De um lado, os guerrilheiros lutavam contra a ditadura militar; de outro, o Exército dizia defender a Pátria. A população, entre o fogo cerrado, foi ameaçada, coagida e muitas vezes torturada. 

Em 1966, integrantes do PCdoB, divergindo frontalmente da postura do Partido Comunista Brasileiro, começaram a se instalar no ‘Bico do Papagaio’, entre o sudeste paraense e o norte do Estado de Tocantins. Alguns, como o célebre Osvaldão, haviam recebido treinamento na China. Os futuros guerrilheiros, a maioria com boa formação escolar, foram aos poucos se instalando em pequenos municípios como São Domingos do Araguaia, São Geraldo do Araguaia, Brejo Grande do Araguaia, Palestina do Pará, Xambioá e Araguatins. Surgiram como compradores de terras, comerciantes, trabalhadores rurais. Conquistaram a afeição dos moradores locais, que os chamavam de ‘paulistas’. Faziam atendimentos médicos, davam aulas e, assim, tentavam incutir consciência política nos humildes habitantes das comunidades. Não demorou muito, começaram a chamar a atenção dos militares. Entre 1972 e 1974, as Forças Armadas fizeram três investidas destinadas a acabar com o foco. Foram escorraçadas na primeira, recuaram estrategicamente na segunda, e, depois de uma das maiores operações de espionagem e infiltração da história, na última partiram para o extermínio. 

Do lado guerrilheiro calcula-se que 98 pessoas atuaram diretamente, na luta armada ou trabalhando na logística. Umas vinte eram da comunidade local. Do lado oposto, pelo menos cinco mil agentes, entre policiais militares, federais, civis e da Polícia Rodoviária Federal. O saldo foi um banho de sangue. 

O depoimento do padre Robert de Villecourt é impactante. Sebastião Curió se apresentou em Brejo Grande como sendo um comprador de terra. Visitou várias fazendas na área que depois passou a se chamar “OP 3”. Ele tinha outro nome. Quando começou a operação de “caça” aos “terroristas”, passou a ser conhecido como Major Curió. Eu morava em São Domingos do Araguaia, desde o dia 5 de janeiro de 1972, quando ouvi pronunciar esse nome a primeira vez. O povo convidava a gente para celebrar missa ou batizar as crianças. Quando começava a celebração chegavam muitos carros do Exército que paravam na frente da capela ou da casa onde estávamos. Curió mandava reunir o povo e fazia distribuição de presentes para as crianças ou de alimento. O povo, por interesse ou por medo, deixava a capela e os religiosos terminavam a celebração sozinhos. Curió explicava ao povo que havia dois tipos de padres: os “ortodoxos”, que seriam os verdadeiros, e os padres comunistas que apoiavam os terroristas. Ele se apresentava como católico praticante, de comunhão diária. Convidava o capelão militar que vinha de Belém para celebrar e mobilizava o povo e todas as crianças das escolas da área. Ele estimulava a delação. Um vizinho tinha obrigação de vigiar o vizinho e denunciar se tinha algum contato com os padres. Assim, um dia, uma família amiga nos convidou para celebrar a missa. Quando chegamos lá não tinha ninguém. Vimos uma mulher escondida no quintal e nós a chamamos. Ela chegou, chorando, nos suplicando de sair o mais breve possível porque o Curió tinha dito que quem recebesse esses padres comunistas perderia o seu lote e seria preso e torturado. No dia 1 de junho de 1972, membros do Exército chegaram à casa das irmãs, em São Domingos, e me pediram para acompanhá-los, junto com a Irmã Maria das Graças. Fomos de noite para o lugar chamado “a Metade” onde nos interrogaram e olharam umas fotos. Queriam nos identificar com os que eles chamavam de “terroristas”. No dia seguinte, levaram-nos, a irmã, eu e um lutador de circo, para a Palestina. Um tenente chamado Alfredo me acusou de ser comunista e me bateu de maneira muito violenta durante umas horas. Ele não bateu na irmã, mas ameaçou, dizendo que em Araguatins tinha homens especializados em tortura de mulheres. Fomos amarrados que nem porcos e jogados num jeep. Fomos até Araguatins. Quando viram o carro do bispo que estava de passagem foram nos esconder numa outra rua. À noite nos levaram de volta para São Domingos. O pior foi depois: durante dois ou três anos fui vítima de denúncia, humilhação pública…uma tortura não física, mas psicológica, insuportável. Se ele mesmo praticou a tortura ou assassinou pessoas não posso afirmar. Sei que mais de 300 pessoas foram torturadas, algumas não voltaram mais para casa e outros ficaram loucos”. 

Todos os sequestros ocorreram durante a denominada Operação Marajoara, última fase dos combates entre Exército e militantes. “Nessa etapa houve o deliberado e definitivo abandono do sistema normativo vigente, pois decidiu-se claramente pela adoção sistemática de medidas ilegais e violentas, promovendo-se então o sequestro ou a execução sumária dos militantes. Não há notícias de sequer um militante que, privado da liberdade pelas Forças Armadas durante a Operação Marajoara, tenha sido encontrado livre posteriormente”, relata o MPF nos processos judiciais.

Como bem registra o professor de Antropologia da UFPA, Rodrigo Peixoto, no projeto “Arquivo da Memória Social da Guerrilha e da Guerra que Veio Depois”, que coordenou, “a guerrilha é um episódio seminal na história da região, no entanto não está incluída nos currículos escolares das escolas públicas, de modo que sua memória, embora viva, continua reprimida socialmente.” 

O material coletado pelo Grupo de Trabalho Tocantins, com mais de 80 horas de entrevistas em áudio e vídeo com ex-combatentes e moradores da região do Araguaia, está disponível aqui.

O processo nº 0000342-55.2015.4.01.3901 tramita na Justiça Federal em Marabá. 

Leiam a íntegra da denúncia e cota aqui.

Façam o acompanhamento processual aqui.
Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, presidente da Academia Paraense de Jornalismo, membro da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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