Ligo o computador e sintonizo na RTP. É domingo e eu nunca vejo a TV aberta em nenhum dia da semana. Hoje tem um motivo que sabe mal: a abertura da Copa do Mundo. Não ligo a TV como um momento de entretenimento dominical. Olho para a tela para testemunhar a história, uma história de morte que coloca a última pedra na lápide de corrupção que enterra o futebol mundial.
Nesta Copa do Mundo do Qatar, em especial, o assunto principal não é o futebol e sim aquilo de pior que o capital pode provocar: o total desprezo pelos direitos humanos. Quando o Qatar comprou conquistou a sede para o Mundial de 2022 todo o mundo já sabia dos inúmeros desrespeitos aos direitos humanos, principalmente em relação às mulheres e à população lgbtqia+ (no Qatar uma mulher precisa da autorização de um tutor masculino para praticamente qualquer coisa e homossexualidade é crime), mas a proporção do horror conseguiu ser multiplicada em níveis absurdos com a exploração desmedida de trabalhadores, em sua grande maioria estrangeiros, em condições insalubres que gerou um resultado de seis mil e quinhentas mortes oficiais (estipula-se que o número real esteja entre doze e quinze mil pessoas).
Várias seleções manifestaram-se contra este combo de exploração e opressão no Qatar. Os primeiros foram os Socceroos, seleção da Austrália, que lançou um vídeo-manifesto com a participação da maioria dos jogadores.
A Dinamarca foi proibida de usar camisa com uma mensagem “Direitos Humanos para todos” como uniforme de treino. O CEO da Federação Dinamarquesa de Futebol declarou que “Somos da opinião de que a mensagem Direitos Humanos para Todos é universal e não é um apelo político, mas deve ser algo que todas as pessoas possam apoiar”. Mas a proibição não foi o suficiente e o país, até agora, é com a atitude mais corajosa em relação a não se calar sobre a violação dos Direitos Humanos no Qatar: os três uniformes da seleção dinamarquesa são silenciados – com suas logos atenuadas – em homenagem aos trabalhadores imigrantes que morreram durante a construção dos estádios e da infraestrutura para a Copa. A FIFA proíbe uniformes com mensagens políticas, mas como não há palavras ou logotipos, eles não estarão quebrando nenhuma regra. O destaque fica para o terceiro uniforme, preto, representando diretamente o luto. Por sinal, a camisa preta é um hit de vendas no mundo e já representa a maior venda internacional do equipamento dinamarquês. Só na própria Dinamarca é que a camisa vermelha vende mais. Até agora. A fabricante Hummel pronunciou-se nas redes sociais: “Preto ⚫ A cor do luto. A cor perfeita para a terceira camisa da Dinamarca para a Copa do Mundo deste ano. Embora apoiemos a seleção dinamarquesa o tempo todo, isso não deve ser confundido com o apoio a um torneio que custou a vida de milhares de pessoas. Queremos fazer uma declaração sobre o histórico de direitos humanos do Catar e seu tratamento aos trabalhadores migrantes que construíram os estádios da Copa do Mundo no país. #HistoryIsWhatWeDoNow”.
Apesar da proibição da FIFA, como já citamos, do uso de palavras ou logos não-oficiais, capitães de nove nações europeias deverão usar a braçadeira One Love (“Um Amor”) para se posicionarem pelos Direitos Humanos, mesmo com a ameaça de punição, que poderá ser uma multa e um cartão amarelo. Entre os que confirmaram que não vão se acovardar estão Harry Kane, da Inglaterra, Gareth Bale, de Gales, e Manuel Neuer, da Alemanha – por quem eu tenho enorme admiração em razão de trabalho social em defesa dos direitos das crianças. Aliás, eu sou fã da seleção da Alemanha desde 2006 por causa do comportamento coletivo e individual de muitos atletas, e que depois de muitas décadas conseguiu ressignificar seus símbolos nacionais roubados pelo nazismo. Mas depois eu conto melhor isso.
Agora, assisto atônita o ator estadunidense Morgan Freeman, uma das únicas celebridades ocidentais que se prestou a fazer parte da cerimônia de abertura, uma cerimônia protagonizada quase que exclusivamente por homens, na qual contracenou com um portador de necessidades especiais, numa forçação de barra de passar uma imagem de inclusão que todos sabem que não é real, apesar do jovem Ghanim Al-Muftah ser realmente uma figura pública proeminente no país e uma história inquestionavelmente inspiradora. Lembro imediatamente da imagem de Surendra Tamang, que ficou fadado a fazer hemodialise todos os dias, pelo resto da sua vida, já que não tem nem prospecto de ter um doador de rim, depois de trabalhar na construção desses lugares espetaculosos que mostram agora na TV. O sheik Tamim bin Hamad al-Thani, Emir do Qatar diz em seu discurso que fizeram esforços e investimentos para o bem da humanidade. Que humanidade é esta? A elite catari que vai ficar mais trilhardária do que já é? Também disse que todas as “orientações” eram bem vidas ao Qatar e que beleza era juntar essas diferenças todas. Continuo atônita. Assisto a cerimônia homenagear os voluntários e não fazer sequer uma menção aos mortos. A música-tema fala de sonhos, sonhos que não existem para tão significativa parte da população. No final, aparece o mascote La’eeb (“jogador super habilidoso”), que mirou nos lenços de cabeça masculinos (claro) mas acertou no Gasparzinho – que, neste caso, é um fantasma nada camarada rodeado de mortes terrivelmente reais.
Muitos sabem de cor os nomes dos jogadores – muito dos quais, como o estrelinha sonegador de impostos da seleção brasileira Neymar, que não demonstram qualquer preocupação ou desconforto com tantas vidas perdidas e tantas outras violentadas – mas os nomes dessas pessoas que morreram ou sofrerão pelo resto de suas existências por nada continuam silenciados. Inspirados nos álbuns de figurinhas colecionados por adeptos de todos os cantos do mundo, a Blankspot – uma plataforma de jornalismo investigativo com sede na Suécia fundada em 2015 com o objetivo de contar as histórias não contadas – criou o Cards Of Qatar, um site que conta a história das vítimas da Copa de 2022 e que se propõe a recolher novas denúncias. Se essas cartas não te comovem, tá na hora de rever um pouco os teus conceitos de humanidade.
E, como se já não bastassem todos os problemas envolvendo este Mundial, nós, brasileiros, ainda temos um (momentaneamente ignorando todos os outros relacionados à história de corrupção da CBF) para chamar de nosso: a apropriação dos nossos símbolos nacionais, incluindo a camisa da seleção canarinha, pela extrema-direita bolsonarista, antidemocrática, que desafia todos os princípios lógicos, racionais e de bom senso ocupando as ruas a pedir por uma ditadura que, na prática, cercearia a liberdade deles próprios.
Adaptando a introdução de Marx para a sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, o futebol é o ópio do povo. Pessoalmente, não acho de todo mal. Todos nós precisamos de escape e o esporte é uma excelente forma de entretenimento – principalmente se praticado e não só assistido. O esporte sempre ocupou e sempre ocupará um papel de importância na minha vida e temos mil e uma provas de que, quando usado como política pública, gera resultados que beneficiam a sociedade de inúmeras formas. Além disso, as pessoas têm direito a uma folga em suas lutas, a esquecerem seus problemas durante pelo menos noventa minutos, de rirem, chorarem, festejarem, de serem felizes.
As Copas do Mundo talvez sejam os únicos momentos históricos em que o Brasil tenha um sentimento unificado e se sinta uma só nação. É só durante a Copa que nos sentimos iguais. Mas tiraram isso de nós. Hoje temos medo de usar uma camisa verde e amarela e sermos confundidos com membros deste surto coletivo que toma as ruas do nosso país. Nosso país que também violenta e mata as mulheres, os lgbtqia+, os povos originários e tradicionais, os negros, pardos, pobres, portadores de necessidades especiais, nosso país que arde não por causa das temperaturas inóspitas, mas pelo capitalismo desumano, covarde e criminoso.
Uma das lembranças mais antigas que tenho na vida é da Copa de 94. “O verde e o amarelo são as cores que a gente pinta no coração”. Sentávamos eu, Luciana, e nossos outros primos na casa da nossa avó com a incumbência de picar jornais velhos para comemorar os gols. Hoje em dia não compramos mais jornais impressos e nossa consciência ambiental jamais nos permitiria deixar de reciclar um papel usado para produzir esse tipo de lixo. Vejo hoje a grande parte da minha geração olhar embasbacada para a geração de seus pais e não entender em que momento eles passaram a compactuar com ideais tão absurdos e violentos. Assim como a abertura da Copa, observo atônita muita gente da minha própria geração não se importar com os crimes contra a humanidade cometidos no Qatar e no Brasil, e enquanto eles podem assistir aos jogos comendo churrasco e tomando cerveja trinta e três milhões de pessoas no Brasil passam fome. Poderíamos estar todos unidos, dentro das nossas tão estrondosas diferenças e distâncias, para torcer por um símbolo que nos transformava em nação, pela democracia que meu conterrâneo Sócrates vinculou ao futebol e tanto lutou. Não vai rolar.
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