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Vivemos numa terra sem outonos. Sem primaveras também. Por aqui apenas a chuva serve como termômetro ou calendário a medir ou indicar as estações. Ora chove muito, ora chove pouco. Certos meses faz um calor insuportável, noutros um insuportável calor. Mas outono mesmo nunca se viu nessas paragens; é algo estranho à Amazônia, quase tão estranho quanto filho de garimpeiro virar doutor, quase tão estranho quanto um filho da fome e da miséria subir aos grandes palcos da literatura nacional, cheio de prêmios ganhos e com outros tantos a ganhar.

Raimundo saiu do Piauí ainda moço, atraído pelo ouro. Maria fugiu do Maranhão aos dezessete anos. Ambos embrenharam-se no hostil e desassistido sudeste paraense, pobres e analfabetos, mão de obra braçal. Eram apenas mais dois entre os milhares que ali cruzaram histórias de vida e abandono, encantados com a promessa dourada enterrada no fundo do buraco, duzentos metros abaixo da realidade, literalmente enfiando-se na lama do garimpo para esperançar vida melhor.

Na carência fizeram dez filhos aos quais nem sempre tinham o que dar de comer. Perderam alguns deles para os horrores da violência, outros mantiveram como foi possível manter, história comum a uma multidão de homens e mulheres que, desprovidos de tudo e enfeitiçados pelo eldorado, amontoaram-se nos arredores de Serra Pelada, no início dos anos oitenta, para protagonizar um dos episódios mais terríveis e nebulosos da história brasileira.

Tinha tudo para dar errado. Deu errado para muitos. Senão para todos, certamente para a maioria. Cotidiano feito de indigência, doença, pistolagem e morte, escravidão camuflada que obrigava homens a subir e descer dezenas de vezes aquelas precárias escadas de madeira, carregando às costas dezenas de quilos de terra, lama e melechete, acreditando que um milagre os faria bamburrar, palavra que no dialeto local significava encontrar ouro, alcançar riqueza e mudar de vida.

Raimundo não bamburrou. Maria e os filhos seguiram desbamburrados, dormindo em redes na casa de barro, desterritorializados, invisíveis e de estômago vazio. Não sabiam ainda que os quilômetros acumulados nas subidas e descidas nas “quase-mamães”, buraco abaixo, buraco acima, arriscando a vida presente, já que futuro não havia para arriscar, não foram em vão. Desconheciam também que o que trouxeram de lá vale mais do que ouro.

Esta semana estive na Conferência Amazônia Novas Economias, promovida pelo Instituto Brasileiro de Mineração, para participar do “Sempre um Papo”, projeto capitaneado pelo Afonso Borges que reuniu em Belém a fina flor da literatura lusófona. Nomes como Itamar Vieira Junior, Carla Madeira, Sérgio Abranches, Eduardo Neves e Valter Hugo Mãe uniram-se aos amazônidas Trudruá Dorrico e Airton Souza, o filho do Raimundo e da Maria, o filho de garimpeiro que virou Doutor em Comunicação, o filho da fome e da miséria que hoje frequenta os grandes palcos da literatura nacional.

É de Airton o romance “Outono de carne estranha”, vencedor do Prêmio SESC e finalista do Prêmio Oceanos, dois dos maiores galardões da língua portuguesa. O livro é forte, ousado, corajoso e belo. Denuncia os horrores de Serra Pelada por meio da história do amor homoafetivo entre Zuza e Manel, envolvendo ainda os conflitos íntimos de Zacarias, um padre que abandona a batina e se torna garimpeiro, atraído pela força arrebatadora e magnética daquele inferno na terra.

Maior que o livro, contudo, é seu autor, como puderam comprovar todos que compareceram à conferência, somados aos que estavam na Feira do Livro de Itabira, onde Airton participou de uma mesa de debates, e aos que já tiveram o privilégio de ouvi-lo nas palestras e eventos literários que tem posto sob holofotes, visível como nunca esteve antes, o outrora invisível habitante de Marabá, professor, historiador, escritor e poeta com 51 livros já publicados em poesia, prosa e literatura infantojuvenil.

Ouvir Airton é bamburrar, enriquece e transforma. Vê-lo são e saudável, limpo e curado de feridas que bem poderiam estar abertas, tal sua crueza e profundidade, liberto de rancores que seriam plenamente compreensíveis, a falar abundantemente de amor e educação, a louvar o afeto como tábua de salvação e, sobretudo, a enaltecer e dignificar a escola pública brasileira, foi uma experiência redentora.

Egresso da penúria material absoluta, negro e filho de pais analfabetos, Airton fez da educação e da literatura uma rota de escape, nelas buscou a dignidade que lhe foi negada por tantos anos, e que ele precisou conquistar sozinho. Trilhando esta rota, Airton renunciou à herança maldita que Serra Pelada lhe reservara, afirmando-se como ser humano, sujeito de direitos, voz eloquente a anunciar e denunciar um Brasil que precisa ser olhado com mais atenção.

Airton nasceu para ser número, estatística, mas refutou esse papel, recusou-se a exercê-lo. Transformou sua história pessoal em um grito de alerta da Amazônia em defesa daqueles que a habitam. Não basta salvar a floresta, pensar a floresta ou proteger a floresta. Urge salvar, pensar e proteger as pessoas que nela nascem, crescem, estudam, trabalham, amam e constroem culturas, valores, famílias e legados.

Não sei se o IBRAM vai disponibilizar as imagens da conferência, se o fizer não deixem de assistir. Enquanto isso, e enquanto Airton Souza termina o novo romance que mencionou durante o bate-papo, deixo abaixo a indicação do livro que o consagrou e o link do “You Tube” com a sua participação na Flitabira. Leiam e assistam, equivale a mergulhar a bateia na água suja e retirá-la repleta de pepitas de ouro.

Souza, Airton, “Outono de Carne Estranha” – Ed. Record

Participação de Airton na Flitabira (Feira do Livro de Itabira/MG: https://www.youtube.com/live/_eKuM1shKOI?si=f6kiulZ76fMumm9D

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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