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Farei uma pequena fuga pela metalinguagem para dizer que é sempre uma renúncia a outros temas candentes escolher o assunto para o domingo.

Hoje, por exemplo, enquanto visitava muitas fronteiras e margens de assuntos, nas minhas incursões virtuais e imaginárias, capilarizando furos e paranás  neste rio de pensamentos, cuidava de falar um pouco dos pães literários de Umberto Eco ou de Dalcídio Jurandir; pães fermentados com excelente levain, para ser partido à mão entre companheiros, em pequenas côdeas; comido gostosamente e com parcimônia.

Talvez falasse de Baudolino, meu personagem favorito de Eco,  ou de Eutanásio, de Dalcídio Jurandir, também incrível. Eu penso assim: sempre que falamos sobre uma personagem, ela se anima lá no panteão da ficção, desce até o mundo da vida e brinca um pouco de existir aqui, entre quatro dimensões de espaço-tempo.

Enquanto desenhava mentalmente o meu Baudolino, com grafite imaginário, acessei em minha timeline a postagem no Uruá-Tapera sobre o Pacto Para o Futuro,  adotado por líderes globais, no dia 22 de setembro, em Nova York, durante a Cúpula do Futuro das Nações Unidas.

Uma leitura rápida no documento do Pacto me acenou a ação 15, sobre direitos humanos e igualdade de gênero. Esta é uma das metas globais para o futuro: eliminar a desigualdade e a violência contra mulheres. Passava os olhos pelo documento da ONU, subscrito pelo Brasil, enquanto ouvia Habanera, de Bizet. Pensei: é um convite para falar sobre Carmem, outra personagem que amo.

A ópera

A ópera é um gênero que requer alguma educação musical erudita, dizem os críticos. Não tendo sido educada musicalmente no gênero, fui desbravando-o por conta própria, muito pelo interesse na teatralidade, no drama, na poesia, nos temas e nas narrativas contadas nesse gênero. Você poderá sair cravejado por notas musicais carregadas de narrativas mágicas, cantadas e contadas por vozes poderosas e pungentes.

Graças à Internet, é possível desfrutar desses prazeres sofisticados e mimos da vida. Por sorte, temos hospedadas em plataformas digitais montagens internacionais de peças clássicas para acesso, deleite e desfrute, entre pipocas e outras delícias.

Carmen é composta por Georges Bizet, com libreto* de Henri Meilhac e Ludovic Haléve. A obra é adaptada da novela Carmen, de Prosper Mérimée, publicada em 1845.

Femme fatale

O que dizem sobre Carmem no Google?

Diz-se que Carmen representa uma cigana sedutora, faceira, destruidora de homens que, quando passa, carrega consigo uma atmosfera devastadora para aqueles que, mesmerizados, seguem-na. É uma criadora de causas, desvios e descaminhos.

Podemos imaginar e construir mentalmente a nossa Carmen a partir do que se diz da memória dela nas resenhas virtuais e nos panfletos das montagens da peça de Bizet: uma mulher devoradora de homens, que lhes cozinha os corações arrebatados para comê-los no jantar.

A minha Carmen pode ter sido uma mulher da cultura cigana, de estatura média, cujo perfume campestre das flores de Sevilla deixa atrás de si uma sillage em forma de nuvem. Carmen, depois de encerrar o expediente na fábrica de fumo, corta fios de vento com os cabelos esvoaçantes, brincando de colher gotas de orvalho vespertino; pele úmida, macia, viva e confortável ao toque; andar cruzado, acrobático e vivaz, mexendo as ancas em zigue-zague; fala com todos, assovia, pigarreia e ri gostosamente de algum embevecido que a segue com os olhos mareados de amor Eros.

Para os homens daquela época, Carmen é uma cigana. Uma Deusa, uma louca, uma Feiticeira; ela é demaispara o pobre e frágil coração dos homens, que deixam tudo à sorte para seguir o rastro de seu perfume feromônico. Pobres ratos a segui-la, a flautista de Hamelin.

Ordinária, prostituta, maldita! Pobres homens… Pobre Don José, que deixou brasão, medalha e armas para seguir à desditosa tentadora, que dele tanto desfez, fustigando-o com os chicotes dos ciúmes, ela e seu amigo Lilas Pastia.

Près des remparts du Sévilla…

Copos de Manzanilla! Don José, até ele, não escapou de suas garras vermelhas. Ah, os ciúmes…  Tempero indiano do amor louco.

Merece a morte! Arrebente-se o ventre maldito da tentadora.

Eia! Lave-se o moral dos pobres homens honrados na lâmina do punhal de Don José.

Si je t’aime, prends garde à  toi!

É justo?

Jamais!

O corpo morto de Carmem é um vilipêndio ao corpo de todas as mulheres. É o corpo coletivo de um delito esteticamente representado por Bizet. La Seguedilla – experimentem ouvir com essa proposta – é um hino à liberdade, enquanto Habanera é uma ameaça de morte.

O pacto afetivo entre duas pessoas livres e iguais, já é tempo para que se diga, é um acordo íntimo, voluntário, que não suspende os direitos subjetivos públicos e individuais à liberdade, à incolumidade e à autodeterminação de uma das partes. Amor é dádiva, não dívida.

Carmem é um hino por todas as mulheres que trazem gravado e entalhado em seus corpos com letra escarlate o libelo-crime da violência.  Cicatrizes em alto relevo, memórias aterradoras, dores incuráveis e histórias irrepetíveis fazem da mulher vítima da violência um corpo de delito público, prostrado sobre o chão rubro, que clama por memória, justiça e reparação.

Quantas Carmens há, hoje, vivas, lúcidas, camuflando de seus corpos marcas indeléveis de uma vergonha que não é sua, a não ser por delegação daqueles que deveriam expiar a flacidez moral dessa covardia?

Quantos filhos, filhas, há a chorar a dor de suas mães feridas ou mortas pela insanidade disfarçada de outros discursos? Ciúmes e embriaguez jamais serão eufemismos para crueldade e vileza.

A tragédia de Carmem, neste ambiente político de projeção futura da comunidade global para a erradicação da violência contra mulheres, é a oportunidade para reparar memórias curtidas pela dor e para tatuar justiça sobre cicatrizes profundas. Um minuto de silêncio pela memória coletiva de Carmem, em nome de todas as mulheres vítimas de violência.

Por um século XXI sem crueldade, covardia e violência contra mulheres!

Leituras

https://www.teatrolafenice.it/wp-content/uploads/2019/03/CARMEN-TESTO-LIBRETTO.pdf

https://www.un.org/en/summit-of-the-future/pact-for-the-future Carmen e outras histórias: edição comentada: Novelas e contos completos https://a.co/d/dTRsl9a

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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