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Para começo de conversa, que fique claro que o “expiatório” do título deste é grafado com “X”, pois deriva do verbo “expiar”, consequência punitiva decorrente de um erro ou falta grave que cometemos. Já “espiar”, escrito com “S”, significa espreitar, vigiar, espionar, observar atentamente qualquer coisa.

O saudoso advogado, magistrado, intelectual, acadêmico e professor paraense Edgar Olyntho Contente, bolou um neologismo que usava para alertar, com bom humor, os alunos do velho Casarão sobre a rigorosa proibição de “espiolhar” a prova do colega que estivesse sentado ao lado… A grafia equivocada dessas duas palavras, lembra a costumeira confusão entre o “mas” e o “mais”, de pronúncias semelhantes, mas de significados diferentes. Muitos esquecem que o “mas” (conjunção) deve ser usado para exprimir ideias opostas, fazendo às vezes de “porém”, “contudo” ou “todavia”; e o “mais” (advérbio), indica um acréscimo, um aumento e é o oposto da palavra “menos”.

Voltando ao tema principal, a expressão “BODE EXPIATÓRIO” refere-se a alguém que suporta as consequências deletérias dos erros dos outros, pagando por eles. Sua origem remonta no ritual judeu do Livro dos Levíticos, do Antigo Testamento, em que Aarão, ao pôr as mãos sobre a cabeça de um bode, transmite para o animal todos os pecados do povo de Israel.

E a partir dessa origem bíblica, passou a ser comum usarmos o termo “BODE EXPIATÓRIO” para caracterizar o suposto culpado por um ato reprovável, sem que tenha sido ele a cometê-lo. Tal expressão, que hoje faz parte da nossa linguagem, retrata situações em que uma pessoa ou um grupo de pessoas inocentes, foi ou está sendo responsabilizado por uma culpa inexistente.

Indivíduos ou grupos, carregam eles suposta culpa por deslizes, dramas ou problemas que não são exclusivamente seus e exemplos não faltam. Basta lembrar que os judeus, na sombria época da Alemanha nazista, foram considerados culpados pelos problemas econômicos e sociais da nação, virando “bodes expiatórios” para as desumanas atrocidades de Hitler.

Ainda na Europa medieval, mulheres paupérrimas e marginalizadas foram acusadas de “bruxaria” e implacavelmente perseguidas e punidas, se tornando  “bodes expiatórios”, de vez que lhes eram atribuídas as causas de todos os problemas sociais, como doenças, vícios e até a frustração das colheitas.

Ademais, durante a construção da ferrovia transcontinental nos EUA no Século XIX, os trabalhadores braçais chineses, além de explorados até à exaustão, posteriormente foram culpados por problemas econômicos e sociais, fazendo surgir leis discriminatórias, como a famigerada “Lei de Exclusão Chinesa”.

Tais exemplos mostram como transformar uma pessoa ou grupo de pessoas em “BODES EXPIATÓRIOS”, vertente de odiosa discriminação, inaceitável violência e aberta injustiça. Na música popular brasileira, surgiu um “rap” (estilo musical que é expoente da cultura “hip hop”, no qual rimas e poesias são faladas, sobre uma barulhenta base rítmica), que usou a expressão “BODE EXPIATÓRIO” como título, abordando temas nitidamente sociais e políticos:

RACISMO, PRECONCEITO,

DISCRIMINAÇÃO
SÃO MANEIRAS DE AGIR
MOSTRAM A NÓS DESUNIÃO
NÃO SEI QUEM É PERFEITO
MAS EU VEJO EGOÍSMO
NÃO SEI QUEM É PERFEITO
MAS EU VEJO SOLIDÃO

BODE EXPIATÓRIO!!! (repete 4 vezes)

Uma das características principais dos chamados “bodes expiatórios”, sejam eles grupos de pessoas ou indivíduos, é a falta de poder, a sua incapacidade de lutar contra aqueles que ostensivamente os oprimem, sendo-lhes difícil entender porque um grupo social ou uma pessoa canaliza suas frustrações e idiossincrasias contra os demais, só porque eles são diferentes ou desiguais.

A necessidade que a maioria tem de encontrar um culpado, mesmo sabendo que essa prática gera preconceito, discriminação, violência física e/ou psicológica, nos remete aos bancos escolares, onde tomamos conhecimento da existência de Tiradentes, mártir da independência do Brasil, espécie de Cristo cívico da nacionalidade, que pagou com a vida seu sonho de liberdade.

O jornalista e escritor gaúcho Eduardo Bueno, no livro “BRASIL: UMA HISTÓRIA” (editora Leya, 2013), afirma ter sido ele um “BODE EXPIATÓRIO” da Inconfidência Mineira, revolta motivada pela abusiva cobrança de impostos, e integrada por intelectuais, religiosos, militares e fazendeiros de Vila Rica (hoje Ouro Preto), da qual só ele, simples alferes do Regimento de Cavalaria de Minas Gerais (atual Polícia Militar), que nem dessa requintada elite fazia parte, experimentou a crueldade do títere português até mesmo depois de morto na forca, incumbindo-se a República, quase um século depois de seu suplício, de transformá-lo no herói nacional que nós até hoje reverenciamos.

Célio Simões
Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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