Publicado em: 19 de dezembro de 2025
A sinalização do governo federal de destravar ainda em 2025 a tramitação da Ferrogrão, ferrovia planejada para ligar Sinop (MT) a Miritituba (PA), com leilão projetado para 2026, recolocou no centro do debate um ponto que, segundo especialistas e organizações sociais, segue sendo tratado como detalhe: a necessidade de Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) antes de empreendimentos com alto potencial de impacto sobre povos indígenas e comunidades tradicionais.
Orçada em R$ 21,5 bilhões, a Ferrogrão está suspensa desde março de 2021 por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal, justamente pela ausência de consulta a povos indígenas potencialmente afetados. A estimativa divulgada por entidades que acompanham o caso aponta que cerca de 48 comunidades indígenas podem ser diretamente impactadas pelo traçado. Nenhuma teria sido consultada conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), instrumento internacional incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro.
Para Luciana Sonck, mestra em planejamento territorial, especialista em governança e CEO da Tewá 225 (consultoria voltada a desafios socioambientais enfrentados por empresas, governos e organizações), o avanço da Ferrogrão sem CLPI expõe um problema recorrente em licenciamentos no país: a fragilidade da “licença social” e o distanciamento entre decisões administrativas e a vida real nos territórios. Segundo ela, “a falta de CLPI tem produzido um rastro de conflitos, judicialização e paralisia de projetos. É um erro achar que se trata de uma etapa burocrática. A consulta é o que garante legitimidade, reduz passivos socioambientais e fortalece a segurança jurídica. Projetos de bilhões, como a Ferrogrão ou a perfuração na Foz do Amazonas, não podem avançar sobre o silêncio das populações que serão diretamente afetadas: isso aprofunda tensões, amplia custos e fragiliza a governança”.
Em entrevista para o Uruá-Tapera, Sonck avaliou que a discussão costuma limitar-se ao rito do licenciamento ambiental, enquanto os impactos sociais e a capacidade de participação das comunidades são tratados como apêndice. Para ela, “um dos maiores desafios em termos de licenciamentos e concessões no Brasil é legitimar que o licenciamento social também é relevante”. A especialista observa que projetos desse porte alteram dinâmicas territoriais, formas de vida e padrões de ocupação do solo, exigindo diagnóstico prévio e debate consistente com os diretamente afetados.

Ao descrever o que significa movimentar um empreendimento bilionário sem CLPI, Sonck aponta riscos combinados: ambientais, sociais e institucionais. Ela lista ameaças associadas ao acesso facilitado a áreas preservadas, com possibilidade de invasões e intensificação de ilícitos, e consequências sociais agudas durante o período de obras. “Obras desse porte alteram a dinâmica de vida das populações que recebem esses projetos. Desde o acesso a áreas altamente preservadas e a possibilidade de invasões a terras e parques que conservam a biodiversidade, como por exemplo a possibilidade de queimadas, extrações ilegais ou até mesmo acesso de garimpeiros a novas áreas, até questões sociais mais graves como a prostituição infantil, de mulheres indígenas, o aumento do abuso sexual e tráfico durante o período de obras”, afirmou.
A leitura é que a ausência de consulta não apenas amplia danos potenciais, como também eleva o risco econômico dos próprios empreendimentos, ao multiplicar passivos, reações sociais e judicializações. Na prática, o que se vende como “agilidade” pode terminar em insegurança jurídica e paralisação, cenário já visto em sucessivos projetos na Amazônia.
O debate sobre a Ferrogrão se soma a um histórico de conflitos no setor mineral. Os dados reunidos no material que embasa a análise apontam 823 ocorrências de conflitos na mineração em 2020, atingindo mais de 1,08 milhão de pessoas; em 2022, foram 932 ocorrências, com cerca de 688 mil pessoas afetadas, em disputas frequentemente relacionadas a terra e água. Para Sonck, os números ajudam a dimensionar o custo real de decisões tomadas sem participação e sem governança territorial.
Na avaliação da especialista, o padrão se repete em outro front sensível: a Margem Equatorial, com a autorização concedida pelo Ibama à Petrobras para perfuração no bloco FZA-M-59, na Foz do Amazonas. Organizações indígenas, quilombolas e ambientais denunciam a ausência de instrumentos específicos, como Estudo de Componente Indígena (ECI) e Estudo de Componente Quilombola (ECQ), e a falta de consulta às populações locais, apesar de ações judiciais movidas pelo Ministério Público Federal e por entidades como Apib, Coiab, Conaq, Confrem, Greenpeace, Instituto Arayara, Observatório do Clima e WWF-Brasil.
Sobre o caso da perfuração de petróleo pela Petrobras na Foz do Amazonas revelar o mesmo padrão observado na Ferrogrão, Sonck respondeu: “o descaso com a licença social e a consulta prévia é recorrente em casos como esses evidenciam uma fragilidade de governança. Enquanto esses grandes intervenientes seguirem desconsiderando as populações impactadas , ou incluí-los mas sem poder de veto, seguiremos com decisões que priorizam apenas o aspecto do crescimento econômico ao invés de um desenvolvimento sustentável e de longo prazo”.
A especialista defende que a correção de rota é possível antes do avanço definitivo das obras, mas não com “consulta de prateleira” ou com processos esvaziados de informação. Para ela, “a maneira de solucionar processos participativos é garantindo a eles um diagnóstico prévio dos impactos, a escuta aos impactados e um debate consistente para que eles compreendam a dimensão desses projetos e como serão afetados, antes de poder opinar sobre eles”. E alerta: “a consulta a essas populações sem dados, sem informações, gera um cenário de incertezas para tomada de decisão”.
Sonck afirma que soluções de mitigação, mudanças no desenho logístico, remanejamentos, programas socioambientais e ajustes de cronograma precisam ser debatidos com os territórios, em um arranjo de governança “multistakeholder”, com participação efetiva dos atores envolvidos. O argumento central é que projetos já iniciados sem legitimidade social tendem a nascer sob pressão permanente e alto risco reputacional e jurídico, e a história amazônica fornece exemplos de como isso pode desaguar em crises prolongadas.
A retomada da Ferrogrão, somada às controvérsias na Foz do Amazonas, também alimenta críticas sobre um descompasso entre a política climática anunciada e a prática do desenvolvimento. Na leitura de Sonck, “acredito que ainda atuamos com uma agenda política que busca beneficiar a todas as partes, muito em função de anos de polarização política que assolaram a nossa democracia. Porém isso tem um custo, que é o de não bancarmos os limites técnicos e necessários para barrarmos os impactos socioambientais, especialmente diante das mudanças climáticas”.
Ela utiliza uma metáfora para descrever o que considera falta de limites institucionais: “É como um rio sem bordas, ao não colocarmos limites, a água não corre, ela esparrama e inunda a todos, gerando mais caos e menos progresso”. Na avaliação da especialista, são justamente as populações mais vulnerabilizadas que absorvem a conta desse modelo, com impactos diretos sobre modos de vida, proteção territorial e integridade ambiental.
Questionada sobre por que o país insiste em avançar mesmo sob judicializações e mobilização social, Sonck afirma: “a interpretação é simples: a prioridade dessas agendas de desenvolvimento nacional sempre foi contrária à do crescimento sustentável e pautado em soluções de descarbonização”. Para ela, a lógica se sustenta historicamente e segue operando, enquanto sociedade civil e movimentos sociais acumulam dados e evidências para expor lacunas e pressionar por correções.
O ponto de convergência entre Ferrogrão e Foz do Amazonas, na leitura apresentada, é menos técnico do que político: trata-se de quem decide, com quais informações, e qual peso é dado às populações que vivem no território. Licenciamentos que ignoram a CLPI ampliam conflitos, fragilizam a segurança jurídica e reforçam uma governança que normaliza decisões “sobre o silêncio das populações diretamente afetadas”. Exatamente o tipo de atalho que tende a cobrar, depois, um custo muito maior.
Foto em destaque: Ricardo Botelho/MINFRA









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