0
 

Está na minha cabeceira o livro “Reminiscências e Testemunhanças … de uma mulher com espírito cabano”, de Dulce Rosa de Bacelar Rocque, lançado anteontem, 10, no Museu Judiciário do Pará, em Belém.  Ela estava bela e emocionada, celebrando também seus muito bem vividos 82 anos, cercada pela família e amigos. A filha veio da Itália e juntas viajam no início da semana que vem. Nascida em 10 de dezembro de 1943, em Belém do Pará, Dulce Rosa é uma mulher à frente do seu tempo e protagonista de seu destino. Eu a conheci há cerca de vinte anos, pelas redes sociais, e logo pessoalmente em manifestações de rua reivindicando justiça e cidadania. Depois pude ouvir seu depoimento na Comissão Estadual da Verdade, que integrei. A sua força e determinação me impressionaram desde sempre, gerando admiração que só aumenta. Afinal, é muito fácil ser revolucionária aos 18 anos. Já na maturidade…

São raros os livros que contam ações femininas durante a ditadura. O de Dulce Rosa apresenta suas memórias e contribuição para a resistência ao regime militar no Brasil. Uma espécie de tributo às mulheres que lutaram em silêncio e permanecem invisibilizadas. 

Entrou na faculdade de Economia aos 19 anos. Como as aulas acabavam às 18h, a mãe mandava a empregada buscá-la porque moças de família não andavam sozinhas à noite. O movimento estudantil era aguerrido e os veteranos abordavam os calouros a fim de saber de que lado estavam. Dulce Rosa a princípio nada entendia, mas descobriu a possibilidade de as mulheres fazerem parte de movimentos políticos e sociais.

As pretensões de mudanças começaram em casa, enfrentando sua mãe, que substituiu a empregada por seu irmão, e a coisa piorou. Veio o golpe de 1964 e Dulce Rosa foi recrutada pelo PCB para as atividades necessárias ao conhecimento da situação dos estudantes presos. Pouco a pouco se entrosou em estratégias de resistência. Como não tinha qualquer ligação conhecida com os partidos e grupos políticos que caíram na clandestinidade, conseguia circular sem levantar suspeitas e arrecadando, inclusive, recursos financeiros para o PCB entre intelectuais, comerciantes e industriais.

Em 1969 ela foi cursar especialização em Economia Política em Moscou, no Instituto de Ciências Sociais da então URSS, onde conheceu e frequentou a casa de Luís Carlos Prestes. Ali estava por sua própria conta. Tomou as rédeas de sua vida e, apaixonada, casou com um membro do Partido Comunista Italiano e foi viver com ele na Itália. Seu sonho de voltar para Belém foi ficando distante, com o marido obrigado ao serviço militar, que durava dois anos dentro de um quartel. Mas se ocupava bastante. Teve intensa atividade política na Itália em defesa da democracia no Brasil, e escreveu vários artigos em revistas italianas sobre a Amazônia. Agia principalmente no verão, durante os festivais do jornal L’Unita, do PCI, e, além de denunciar a ditadura, recolhia assinaturas em cartas que eram enviadas ao Brasil, a jornais internacionais e embaixadas europeias.

Teve a coragem de desfazer o casamento quando a felicidade acabou e, com uma filha de três anos, descobriu que não podia sair da Itália e voltar ao Brasil com a criança sem autorização do pai. E ele não deu.

Assim, foi ficando, adotou o codinome “Marzia Cioni” e viveu de 1971 até 2004 entre Piacenza e Bolonha, onde cursou Direito Público, além de outra especialização em Programação Econômica do Território em Urbino.  E nem com a lei da anistia conseguiu voltar. Foi desaconselhada por ter seu nome e fotografia nos aeroportos depois de uma viagem de Filinto Müller à Europa. Sabia que poderia ser presa e torturada, além do risco para sua família e as personalidades brasileiras no exílio que conhecia e frequentava.

Trabalhou no setor de promoção de produtos italianos no mercado internacional e por mais de vinte anos na região da Emilia Romagna na área do Comércio, setor de programação econômica do território. Autora das leis de programação da rede de distribuição de carburante, entre 1979 e 1994, e da relativa aos horários de abertura das atividades comerciais entre 1979 e 2003, publicou o livro “La razionalizzazione dela rete di distribuzione di carburante dell’Emilia Romagna” (1997). Realizou o primeiro Círio de Nazaré em Bolonha e por isso recebeu uma Indulgência Plenária da Confraternitá di S. Rocho nel Pradello. 

Retornou em 2005 para o Brasil e se fixou em Belém, onde ainda hoje luta pela aplicação das leis relativas a direitos humanos e à defesa do patrimônio histórico, por meio da Associação de Moradores Cidade Velha-Cidade Viva e do blog Laboratório da Democracia, que criou, além de ativismo nas redes sociais e em plenárias. Quem conhece Dulce Rosa sabe o quanto briga de peito aberto pelas causas que abraça. Seu livro revela a mulher, o ser humano, a amiga, a filha, a mãe e a ativista, tendo como pano de fundo os anos de chumbo na história do Brasil. Leiam (Editora Itacaiúnas).

Confiram algumas fotos do lançamento.

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, membro da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

“Excesso” no Teatro Universitário Cláudio Barradas, em Belém

Anterior

Pré-venda de livro do Daniel da Rocha Leite

Próximo

Você pode gostar

Comentários