A visão ocidental do amor, digamos assim, começa em O Banquete de Platão (380 a.C.), considerado por Lacan um encontro humorístico, merecendo considerações sobre o desejo.
Na casa de Agatão participava um grupo de homens depravados, intelectuais, encharcados de vinho, Sócrates entre eles, seu inimigo Aristófanes e uma mulher, ausente de fato, a sacerdotisa Diotima de Mantineia, figura central do simpósio, a quem o pai da filosofia anunciou como a única tradutora do amor.
Dois mil depois, no consultório terapêutico, um paciente se debate confessando-se apaixonado, após três anos de análise, pela terapeuta, subindo a bandeira vermelha da profissional.
Mário não é o nome dele, mas aqui o será para fins de narrativa. E a terapeuta, digamos se chamar Fernanda, porque aqui interessa falar do amor ocidental descrito pelo analisado.
Disse Mário, à terapeuta, que em seu coração havia por ela uma paixão oculta e silenciosa, recém descoberta, mas que o seu amor – assim acreditava – não era ocidental, prendia-se nas características do imaginário grego das aventuras e tragédias que regaram a razão a partir do século VI, antes da Era Cristã.
O amor que lhe tinha – prosseguiu Mário – era multidimensional e não importava ser correspondido. Amava a terapeuta a quem havia procurado por restar viúvo há alguns anos e não conseguir apaixonar-se por ninguém.
Admirava o meigo olhar da sua interlocutora que anotava tudo e depois de tantas ausências em sessões cobradas, alcançava regularidade de presença todas as sextas feiras, num consultório com vista para a baia do Guajará. Não faltando mais à nenhuma sessão.
A serenidade de Fernanda, imóvel, misteriosa, anotando em três anos de escuta as angústias de Mário, embelezando a sala como a “Moça com brinco de Pérola” da pintura clássica de Vermeer, foram temperos na carência emocional do paciente que permanecia preso ao luto.
A serenidade, igualmente, do próprio consultório de Fernanda, iluminado por dois abajures de luzes amarelas, uma zamiocuca verdejante em um vaso de terracota, uma estátua de Apolo segurando Dafne se transformando em louro, alguns livros de mitologia grega arrumados em uma estante e a confortável poltrona azul em que a psicoterapeuta sentava, algumas vezes livre dos sapatos, também foram temperos na confessada paixão do analisado.
Fernanda era uma mulher bonita, vestindo-se com simplicidade em trajes leves, cabelos claros à altura do queixo, maquiagem branda sobre o rosto angelical, um discreto brinco na orelha, em harmonia com às linhas sinuosas de seu corpo. Especialista em processos autodestrutivos. Divorciada.
Mário era um latino americano com rosto bem definido, despojado de roupas sofisticadas, mas elegante, cabelos castanhos escuros, corpo treinado pela natação que fez na adolescência. Especialista em arqueologia. Viúvo.
A narrativa do enlutado igualmente despertava a curiosidade da profissional que era apaixonada por mitologia grega que o inspirado Mário colocava em cena e descaia o fio da meada de Fernanda que apostava na evolução do paciente.
Mário comparava o amor racionalizado na dependência da emoção, ultrapassando a consciência individual, unificando consciências emotivas e atrativas da concepção de Sartre. Igualmente o relacionamento amoroso, a partir de conceitos como reciprocidade, comprometimento, liberdade, projeto de vida em comum, como anunciava Simone Beauvoir.
Mas na verdade, explicava Mário, o amor era uma ave solta, liberta do conceito de propriedade, em que se acorrentam movimentos, espontaneidades e felicidades, justificando a contensão daquilo que não pode ser contido. Nessa ave autônoma, independente, estava o declarado amor do paciente e Fernanda anotou essa ideia sublinhando.
Cada detalhe dessa experiência terapêutica fortalecia o analisado que vagarosamente superava sua angústia. Depois que Marta partiu, o mundo de Mário restou pobre e vazio, perdendo a vontade de viver.
Em o “Luto e Melancolia”, Freud descreve o luto como um momento lento e doloroso, cuja característica é um sentimento contínuo de tristeza, sendo importante o acompanhamento terapêutico a fim de que o enlutado recobre suas energias na vida. Lacan chegou a dizer que o luto se aparenta à psicose e a Gestalt-terapia, analisando o enlutado, valoriza todas as dimensões do ser humano como a biopsicossociocultural e a espiritual. A relação com o terapeuta facilita uma ressignificação da dor através da expressão dos sentimentos e da possibilidade de colocar em palavras o que está sendo integralmente vivido.
Depois que se tornou paciente de Fernanda, indicada por seu irmão, e a esta submeteu sua questão, sua trsteza foi se transformando em esperança, na medida de um estranho encantamento percebido pela terapeuta.
Em uma sessão das sextas-feiras agendadas, Fernanda avisou a Mário que seu tratamento havia encerrado. Doravante ele poderia prosseguir sozinho, livre do sentimento que o deprimia. Os objetivos foram alcançados, sendo desnecessário a continuidade do suporte terapêutico. Mário concordou e agradeceu à Fernanda pela evolução do tratamento que lhe renovou aptidões.
Depois que Mário se despediu, Fernanda escreveu nas anotações de seu tratamento: “amor ocidental”.
Chegando em casa, Mário resolveu levar as cinzas de Marta para dispersar nas águas da baia do Marajó.
Duas semanas depois Mário encontrou Fernanda em uma apresentação de ópera no Teatro da Paz. Depois do espetáculo, foram jantar no restaurante do Hotel Princesa Louçã, degustando um vinho tinto português indicado pelo maitre Mota.
Uma semana depois viajaram para Praga, República Tcheca, oriente e ocidente da Europa, quando Fernanda aceitou em plena Ponte Carlos que atravessa o rio Vltava, o pedido de casamento feito por Mário.
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