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O domingo é um dia bom para conversas amenas. Diálogos hipotéticos são exercícios para tentarmos compreender melhor esta espécie aparentemente solitária e exclusiva neste vasto universo, onde tem vencido, até agora, o paradoxo de Fermi.

Na nossa cena imaginária, uma civilização alienígena aportaria em nosso planeta e, de forma discreta e pacífica, nos observaria.

Se uma civilização conseguir chegar até a terra, é mais desenvolvida tecnologicamente do que o homo sapiens, afinal, cruzar as distâncias cosmológicas requer tecnologia ainda indisponível para nós.

Da mesma forma que observamos a organização espartana das abelhas e das formigas, seriamos observados. É possível que duas perguntas inevitavelmente sejam feitas por essa civilização:

  1. Como os humanos se organizam socialmente?
  2. Quais recursos os humanos utilizam para sobreviver?

 A resposta à segunda questão é bastante simples. Em regra, queimamos combustível fóssil como fonte de energia, o que por si só responde a questão sobre sermos uma civilização evoluída ou não. Nossa matriz energética predominante é um demonstrativo de nosso baixo grau civilizatório e da relação predatória com o planeta que nos abriga. Posso imaginar o alienígena anotando sobre os gases tóxicos que produzimos nesse processo rudimentar de mecanismos à combustão.

Sobre a primeira pergunta, seguramente, os nossos visitantes precisariam de muito esforço para compreender nossa organização política e social. Eu creio que, inicialmente,  para classificar nossa civilização em algum grau, levariam em conta a estranha desigualdade social entre seres da mesma espécie e o modo de vida daqueles que se encontram nos extremos da escala de desigualdade; sobretudo pelo desperdício da inteligência e da sagacidade do ser humano em produzir tecnologia,  ciência e arte, quando soterrado pela extrema pobreza. Neste tópico, haveria a anotação especial sobre desperdício e abundância em uma ponta; escassez e fome na outra.

Nesse cenário hipotético, civilizações evoluídas, capazes de utilizar fontes de energia e transporte para se deslocar até a terra, possuem estratégias de distribuição de riqueza capazes de desenvolver todos os membros do grupo, de modo que estes sejam vetores da evolução social e tecnológica coletiva da espécie.

Olhando para nos mesmos, percebemos que somos a única espécie detentora de tantos recursos de inteligência em nosso entorno. Inteligência me parece ser um recurso evolutivo muito precioso para as espécies vivas.

Em síntese, civilizações evoluídas e inteligentes devem ter prioritariamente em seus membros a valorização da inteligência como um importante recurso a ser aprimorado em maior grau possível, para que o maior número de membros esteja engajado em trabalhar soluções para os problemas do grupo. Enquanto escrevo estas linhas, há milhares de talentos em ambiente de guerra perdendo oportunidades de contribuir para o avanço civilizatório.

A desigualdade, como oponente da igualdade,  é também objeto de estudo da filosofia, quando da elaboração de uma teoria da justiça, por exemplo. Precisamos entender e explicar para o nosso visitante do cosmos sobre a distribuição de recursos entre os humanos.

É obvio que não poderemos fugir de uma conversa muito séria com algum filósofo genial, se quisermos compreender de maneira mais sofisticada a nossa teoria de justiça.

Vamos enfrentar o humor do filósofo, na audaciosa aventura por dentro de algumas alegorias filosóficas sobre justiça e igualdade, antes de reestabelecer o diálogo imaginário com nossos visitantes intergalácticos.

Devemos saber que os filósofos não gostam que usemos a filosofia em conversas informais. Vamos arriscar?   Na nossa conversa hipotética, o filósofo Ronald Dworkin irá se incumbir de explicar para os visitantes de outro planeta a nossa forma de interpretação da justiça e da igualdade, dentro da sua teoria liberal.

Poderíamos dialogar com John Rawls, também, e sua metáfora do véu da ignorância,  mas creio que seja perigoso acordar dois gigantes ao mesmo tempo para uma simples conversa entre meros mortais não-filósofos (nós e os ETs).

Dworkin irá nos apresentar,  por meio de alegorias, qual seria a forma mais justa de distribuição dos recursos entre os membros do grupo imaginado por ele. Podemos utilizar esse modelo para toda a humanidade,  mas apenas como exacerbação da realidade. Há outros modelos teóricos concorrentes.

A metáfora do leilão hipotético: igualdade distributiva

Nesta alegoria, Dworkin exercita um modelo de distribuição dos recursos entre os humanos, considerando comunidades política e juridicamente organizadas. Esse modelo pretende reduzir as desigualdades até o mínimo ideal.

Dworkin tratará da igualdade distributiva como igualdade de recursos. Através de um leilão hipotético, a preocupação do autor é, duplamente, definir e defender a igualdade de recursos como a melhor teoria da justiça igualitária liberal.

Na teoria de Dworkin, a igualdade de recursos ampla trata de quaisquer recursos atinentes à esfera privada do indivíduo.  A sua teoria até então é uma teoria relativa da igualdade. Uma teoria geral da igualdade deve procurar um meio de integrar recursos privados e poder político.

Embora pareça paradoxal prima facie, o sistema do mercado econômico, sob o peso da acusação histórica de estimular a desigualdade, é emprestado por Dowkin para afirmar a ideia desse mercado como mecanismo de atribuição de preços a uma grande variedade de bens e serviços. Sob este aspecto, o autor empresta a metodologia do mercado para exercitar sua teoria da igualdade de recursos.

Sendo assim, elabora a hipótese dos náufragos e a ilha deserta. Nesse exercício mental, o autor ensaia a distribuição de todos os recursos existentes na ilha de forma igualitária, atendendo aos critérios de justiça por ele defendidos.

 O teste de cobiça é um recurso estratégico do autor, prevendo a situação posterior à distribuição dos recursos, quando, hipoteticamente, algum membro do grupo poderia cobiçar o quinhão de outro membro.

Em um primeiro momento na divisão de recursos, o autor cria a hipótese de o grupo eleger um dos membros para proceder à divisão dos recursos entre todos os demais. Nessa situação, Dworkin supõe ainda não serem, os recursos disponíveis na ilha, passíveis de divisão.

Ainda nessa esteira de raciocínio, o autor supõe a troca dos bens indivisíveis por um grupo de bens divisíveis. A divisão destes bens agradaria a todos os membros do grupo, sem ferir, portanto, ao princípio da cobiça. Ainda assim, observado o critério da isonomia, Dworkin refere à insatisfação de um dos membros do grupo hipotético; não em vista de uma possível desigualdade, mas pela rejeição desse membro da comunidade em relação ao objeto da partilha: os exóticos ovos de tarâmbola e clarete pré-filoxera.

Na hipótese criada, Dworkin pensa ter superado o teste de cobiça, mas não o critério da igualdade, em face do descontentamento de um dos membros com o tratamento dado aos recursos iniciais. Na insuficiência do teste de cobiça para alcançar a justiça da distribuição dos recursos, o autor propõe a ideia de um leilão, ou de algum outro mecanismo mercadológico, para solucionar o problema da igualdade na distribuição dos recursos atendendo ao critério da justiça.

Para o autor, a faculdade de escolher o conjunto de bens aprazíveis conferida aos membros do grupo enfrenta com eficiência – em relação aos demais métodos distributivos – o critério de justiça distributiva. Isto porque, na sua  conclusão, o teste de cobiça é superado quando cada membro tem a liberdade de escolher qual lote prefere. Supera-se também a arbitrariedade na distribuição quando cada membro escolhe o lote preferido.

Alguns fatores aleatórios como preferências pessoais coletivas por um lote comum são colocadas por ele como problemas à sua teoria caso optasse pela igualdade de bem-estar: são situações de sorte ou azar dos membros do grupo.

Na teoria distributiva da igualdade de recursos, o autor diz não persistirem esses problemas, porque a meta é a distribuição justa dos recursos e não o nível de frustração ou de bem-estar a ser alcançado pelos membros após a divisão.

Depois de demonstrar o mecanismo hipotético do leilão, Dworkin empreende sua ideia transplantando-a para a realidade. O autor questiona a viabilidade de implantar seu mecanismo distributivo em uma sociedade com economia dinâmica, trabalho, investimentos e comércio.

 A questão maior de Dworkin é se as estratégias mercadológicas e os mecanismos de produção de desigualdade – como o lucro- não interfeririam no resultado posterior da distribuição igualitária. Ainda, o autor perquire qual mecanismo seria capaz de produzir uma igualdade assente aos princípios de justiça, caso seu projeto do leilão fosse falho. Em resposta a esse questionamento, Dworkin elabora um modelo de leilão igualitário para o mundo real. Sua intenção é, se não equalizar, ao menos aproximar-se de um critério de justiça na distribuição dos recursos.

Para tratar sobre sorte e seguro, Dworkin projeta uma fase posterior ao leilão na ilha de náufragos. Então, o autor trabalha intercorrências naturais passíveis de macular o resultado igualitário do leilão. Considerando algumas categorias de elementos aleatórios, coteja os modelos da igualdade de bem-estar e da igualdade de recursos, tendo em conta pessoas com deficiência.

No modelo da igualdade de bem-estar, não haveria recursos adicionais. No modelo da igualdade de recursos, as faculdades físicas e mentais das pessoas são consideradas parte de seus recursos. Assim sendo, neste segundo modelo igualitário, são imprescindíveis transferências adicionais ou uma compensação inicial a fim de atenuar desigualdades em recursos físicos ou mentais.

Essas são impropriedades práticas dos dois modelos igualitários a serem resolvidas no modelo do seguro hipotético, quando cada membro manifestaria a necessidade. O mesmo raciocínio é empregado pelo autor a respeito do tema trabalho e salários.

Dworkin aponta semelhanças e diferenças entre sua concepção de igualdade e a Teoria da Justiça de John Rawls. O autor releva um importante ponto vulnerável da teoria de Rawls, qual seja: certo grau de arbitrariedade no princípio da diferença. Este aspecto informa a insensibilidade da teoria de Rawls em relação às pessoas com deficiências naturais, físicas e/ou mentais, enquanto a igualdade de recursos não isolaria nenhum grupo com status diferenciado.

A teoria da igualdade de Dworkin pretende elaborar, de acordo com a teoria liberal igualitária, um modelo ideal de distribuição dos recursos entre os membros de uma comunidade política.

O autor rechaça algumas teorias da justiça importantes, como a teoria utilitarista,  e sofistica ainda mais os elementos de sua teoria quando inclui recortes de desigualdade ausentes nas teorias convencionais (Bentham e Rawls).

Retomando o nosso diálogo com os visitantes insólitos do nosso planeta, de que forma explicaríamos para eles a teoria de Dworkin?

Para Dworkin, diríamos, uma sociedade justa e igualitária deverá tratar todos os seus membros com igual consideração, inclusive onde houver diferenças.

Uma sociedade igualitária deverá possuir mecanismos de distribuição de insumos básicos – de subsistência- entre seus membros, de modo a garantir outros estágios de fruição dos recursos disponíveis.

Além dos mecanismos de subsistência,  uma sociedade igualitária e justa deverá distribuir insumos jurídicos, deverá remunerar muito bem o trabalho e distribuir recursos políticos e tecnológicos entre seus membros, para que participem em igualdade de condições da vida pública, produzindo bens individuais e coletivos.

Uma sociedade justa e igualitária tem em seus membros a prioridade e não a utilidade, para fins de distribuição de recursos imateriais, como a arte, a cultura, a manifestação do pensamento e o aprimoramento intelectual de seus membros.

A despeito de ter formulado uma teoria relativa da justiça, uma vez que uma teoria geral levaria em condições a distribuição de recursos políticos, até então, o autor nos sinaliza uma pista importante, quando trata os membros diferentes do seu grupo hipotético com maior grau de consideração: sua teoria contempla a justiça e a igualdade materiais, no sentido de que  os diferentes deverão ser tratados de acordo com seus recursos.

Eu penso que nossos amigos aliens sairiam bastante empolgados de uma conversa sobre a igualdade e a justiça em Dworkin, mas, um sobrevoo pelas desigualdades brutais entre os seres humanos os deixaria seguros de que ainda temos muito trabalho pela frente, até evoluirmos para um grau de civilização capaz de progredir coletivamente,  equalizando desigualdades. Tenho certeza de que eles localizariam a extrema desigualdade como o problema mais sério de nossa organização social.

Para encerrar, deixaríamos para os nossos visitantes o aforismo lapidar da igualdade, segundo Rui Barbosa, em sua Oração aos Moços, que nos inspira a seguir esta jornada: a regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam.

Leitura recomendada:

A virtude soberana: A teoria e a prática da igualdade https://a.co/d/3M3mzw3

Teoria da justiça, Uma https://a.co/d/3mIYVsV

Oração aos Moços https://a.co/d/iPJsnpj

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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