Quando fazia mestrado na Universidade Federal do Pará, tive o privilégio de conhecer a Vera Paiva. Quem foi minha aluna ou aluno, já pode ter escutado essa história. Repetitiva ou não, ela foi significativa na minha construção enquanto sujeita, e consequentemente se soma naquelas marcas mnemônicas que vão nos formando enquanto ser pensante, e no meu caso, professora. Na época, me sentia uma menina em aprendizado: tudo parecia enorme e eu pequena. Vera veio à Belém pela pesquisa com mulheres e aids, realizada por meio da articulação da querida professora Ana Cleide, que por anos coordenou um projeto de extensão no Barros Barreto para ouvir vulnerabilidade e sofrimento psíquico relacionados a aids, especialmente em mulheres. Era um projeto bonito, sério, comprometido, que ofertava atendimentos psicológicos às pessoas vivendo com aids. A Ana Cleide me ensinou muito sobre posicionamento político na academia e foi nas suas costuras que já rompiam com a suposta neutralidade e incomodava psicanalistas mais ortodoxos, que também promoveu um evento sobre Comissão Nacional da Verdade, na época instaurada pela presidenta Dilma. E assim se deu: uma sala de aula comum, do programa (ppgp), Vera Paiva, meia dúzia de gatos pingados, dentre eles, eu, com olhão aberto e ouvidos atentos. Para quem não a conhece, Vera Paiva é psicóloga, professora da USP, autora do livro “Fazendo arte com camisinha” e também filha de Rubens Paiva, ex-deputado que foi preso em sua casa em janeiro de 1971, assassinado nas dependências do Departamento de Operações e Informações (DOI) do 1º Exército, na Tijuca, Rio de Janeiro, e de Eunice Paiva, uma mulher admirável, a quem seu filho escritor, mais tarde lhe dedicou um livro.
Sua fala cheia de emoção e firmemente politizada foi essencialmente forte, triste e necessária. Ela contara que somente naquele ano, sua família e ela tiveram acesso aos pertences que seu pai estava usando no dia que fora levado, também só a partir daquele momento havia o oficial reconhecimento de seu assassinato – passaram uma vida a mercê de violências psicológicas, recebendo trotes provocativos quanto seu “sumiço” (“Seu pai foi visto em cuba, com outras mulheres”, coisa do tipo). Também narrara uma trama recente de assassinatos que buscava deixar a história apagada. Lembro de sair desse encontro consternada: o que ainda queriam esconder? Por que não contar a história dessas pessoas, reconhecer violências e injustiças que passaram? Obvio que sabia a resposta, mas ela veio, de forma evidente, anos depois com a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro e o negacionismo. Digo isto porque acompanhamos em sua gestão vários ataques ao sistema democrático, inclusive no cenário da pandemia de covid-19. Princípios e diretrizes legais diretamente violados, sem vergonha, dissimulação ou pudor.
Fato que também puderam ser observados na área da educação, nas manobras para extinguir disciplinas como história, sociologia, filosofia – campos do saber que fomentam a cidadania no pensamento crítico, nos dando alicerces para um melhor exercício democrático enquanto eleitoras e eleitores. Por isso, é esperado que governos de caráter totalitários ou de caráter fascistas, tenham alvos: professore/as, intelectuais, militantes (movimentos sociais), artistas.
A arte entra em jogo porque ela é um campo de linguagem que nos acessa de formas que, por vezes, podem dispensar palavras. Há um formato de transmissão pela via dos sentidos, dos afetos, do não-dito e do dito. É pelo corpo, pelas imagens, pelos sons. Controlar ou combater a arte é uma forma de dessensibilizar as populações. De encerrar um canal de comunicação. É automatizar e robotizar humanos. Por isso, líderes não afinados ao espírito democrático lutam contra artistas e suas produções: eles têm medo da arte. Eles sabem o poder das obras artísticas.
“Ainda estou aqui” vem justamente romper com cenário de silêncio e emburrecimento, para, a partir da arte literária e da arte cinematográfica, nos afetar e deixar seus registros em nós.
E nesse ponto volto as minhas memórias. Me encontro com livro de Rubem Paiva durante início da pandemia. Lembro da emoção que senti ao ler sobre sua poética forma de falar de memória. Um livro sobre a memória de sua família, em um momento que o esteio da família se fragiliza pela agrura da perda incapacitante da memória. Eunice, em sua fortaleza, lutou sempre por direitos humanos enfrentando violadores da memória, sendo uma de suas lutas também o direito ao território dos povos originários. Ver hoje, uma nova obra nascendo junto ao livro, o aclamado filme, é um presente. E é ainda gratificante ver uma mulher latina, do auge de seus 59 anos, mostrando como podemos gozar de sucesso e de valorizações, mesmo após os 20. Poderia falar muito aqui sobre colonialidade poder, mas nada que diga aqui seria novidade: a falta de valorização da nossa arte e cultura, nossa acessibilidade e afins, mas vou destacar o que ainda acho mais importante de refletir e que está estampado na repercussão do Globo de Ouro: a arte é política. Ela pode assegurar memória.
Não se engane, o que você consome – o que lê, o que ouve, o que assiste – é político, faz parte de uma engrenagem que te influencia diretamente, mesmo que não conscientemente (daí, faz tempo que me nego a assistir Comédias Românticas, geralmente um total desserviço para nós, mulheres).
Narrativas históricas são campos de disputa de poder, campos de tensão, e a estratégia de persuadir com as fakenews não são restritas as redes sociais, tampouco novidade. Os estudiosos do holocausto demonstram como feridas da memória clamam por reparação e o quanto desvalidar experiências sempre foi uma estratégia de violência dos Estados e suas políticas de esquecimento.
O filme que conta a história da família de Rubem Paiva, especialmente de Eunice, também conta muitas histórias de tantos/as outros/as, que não puderam ter protagonismo ou reconhecimento de suas tragedias. É uma narrativa de transmissão aos mais jovens, de acalento aos mais antigos (que não se favoreceram com a ditadura militar) e de convite a refletir sobre o presente: sob o lema de “Deus, Pátria e família” há interesses financeiros sórdidos, que garantem regalia e riquezas para poucos, e que nada tem de fraterno, amoroso, como sua falácia propõe – é um regime de violência e destruição, da tortura e da barbárie, que não dialoga e não respeita as diferenças (por isso, minorias ficam tão fragilizadas e ameaçadas).
Talvez, com essa história que envolveu um ex-deputado, uma mãe que se torna advogada e luta por direitos humanos de vítimas da ditadura e de indígenas, um filho escritor, uma irmã psicóloga/militante/pesquisadora, um diretor de cinema, uma atriz de cinema brasileira, um festival internacional, essa crônica, uma aula anos atrás na formação de psicologia e tanto mais…, podemos pensar nas conexões humanas, como estamos interligados e finalizar esta coluna com um importante ditado iorubá que diz “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”.
Podemos sempre recontar nosso passado e nossa história, nessa espiral que é a vida.
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