#cumgranosalis
Ler algum poema é uma fórmula infalível para estressar o cérebro, mobilizar cadeias de pensamentos: sinapses cintilantes. Para mim, funciona sempre. Você é o próprio Isaac Newton sacudindo a macieira para ficar soterrado por maçãs.
Você deve ler um poema sem pisar no chão da crueza das coisas banais e viajar por labirintos de significados, sempre procurando algumas ideias ou emoções novas ao Norte da bússola de dentro das paredes móveis da caixola, em uma operação para gastar neurônios extras por conta da banca nessa máquina inigualável de sinapses feita por Deus.
É claro que é pouco provável criar uma teoria sobre a gravidade, como o fez Isaac Newton; menos ainda discordar de Einstein, que estava certo mesmo quando estava errado, em suas teorias malucas sobre esticar o tempo e deglutir toda a massa do pão divino em buracos negros. Mas você irá tecer algumas teias de ideias mirabolantes. Algumas pessoas dirão: esse método criativo é estranho; outras dirão: é legal. Não se importe. Apenas experimente:
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim
todos os sonhos do mundo.
Esse é o excerto do belo poema Tabacaria, de autoria de um gigante que, como todo grande alguém, desenhou em seus eus líricos constelares um pequeno esboço do que é não ser nada, nesta infinitude do cosmos. A arte é a comunicação que expande as dimensões da vida. Quando nossos corpos e outros corpos são símbolos, a arte é o significado:
Ó carnes que eu amei. sangrentamente,
ó volúpias letais e dolorosas,
essências de heliotropos e de rosas
de essência morna, tropical, dolente…
Carnes, virgens e tépidas do Oriente
do Sonho e das Estrelas fabulosas,
carnes acerbas e maravilhosas,
tentadoras do sol intensamente…
Um pouco de Cruz e Sousa, para destemperar o domingo. É certo isso! Anota aí: nada tem um significado independente da nossa interpretação. Não somos tabula rasa, mas réguas de Parmênides. Cogito, ergo sum, para Descartes. Ao menos no mundo da linguagem isto é verdade. Seríamos bem menos do que somos, se não fôssemos em quase tudo linguagem.
A linguagem é o que dá significado à matéria corpórea. Um batuque, uma imagem, uma batida, um ritmo, um poema, uma analogia, alguma fantasia ingênua ou sensual, tudo isso tempera o dia, embala os sonhos e atribui sentido onde só há cenários de coisas e pessoas.
Não podemos enxergar as coisas do alto sem os cheiros, toques e gostos perdidos por entre as letras, notas e cores dos códigos imateriais:
Ah, todo cais é uma saudade de pedra!
Hoje, enquanto lia um poema sobre a água, ocorreu a recordação de um sonho que representava medo e destruição de tudo na terra. Fui revisitar alguns conteúdos sobre poética das águas e poética do devaneio, em Gaston Bachelard, muito pela curiosidade que a água e os sonhos me despertam. Antes de buscar os dois livrinhos vermelhos para folhear, lembrei-me de ter visto um DJ no YouTube levando uma versão eletrônica de Lacrimosa, do Mozart, enquanto uma multidão vibrava. A vida não pode ser grande e bela sem isso. Esse presente do Requiem deve ter emergido na memória agora por causa do sonho apocalíptico. Um Requiem para nós?
Sobre as poéticas
Os Sonhos e a água
Os sonhos, na poética do devaneio, são os rêves; enquanto as rêveries são os devaneios. Bachelard lembra da necessidade de colocar no feminino tudo o que há de envolvente e suave, mas é só uma hipótese de autor. Gosto desta hipótese.
As rêveries afagam o imaginário poético como mãos macias, diáfanas, separando pequenos tufos de cabelos que caem por sobre os ombros [você pode sentir um arrepio descer pelo pescoço? É sobre isso]; ou os anima: uma espécie de fisiologia não habitual, sempre evocando uma força que vibra no feminino, para a frequência do encanto tênue, delicioso, diáfano, sensual, e outra que vibra no oposto: áspero, fero, bruto, arrebatador.
Feminino e masculino, neste game de memórias oníricas, não são signos da complexa e rica gramática de gêneros, nem aplicações linguísticas. São emoções, asas de borboletas, pestanas de fadas, sudorese, frio, solavancos no estômago que nos embalam como gôndolas navegando por entre os vasos sanguíneos e por entre os canais do imaginário. Forças que tensionam nossos devaneios de uma ponta a outra. São essas emoções oníricas parte da receita de ouro para uma boa canção, uma sinfonia empolgante, um poema encantador, uma batida que cola no osso: um verso quente de Safo:
Por minha carne,
ó suave bem querida,
e no transporte doce que a
minha alma enleia;
Um scherzo de Beethoven ou a voz soprosa e sensual muito frequente na música pop atual guardam sob a superfície essas texturas. São elas que persigo em toda a arte para consumir nesse lauto buffet a nosso serviço.
Um mamífero sem pelos sempre terá guardado em seu DNA os códigos dessas mensagens, independente de outras gramáticas não biológicas. Somos a única espécie que conhece, questiona e modifica sua própria contingência biológica, embora nem sempre. Somos fascinantes como um verso da Rihanna:
We’re beautiful like diamonds in the sky.
A poética das águas evoca esse poder infinito e a força desse elemento da natureza. Um dos aspectos interessantes da simbologia das águas é o mito de Narciso.
O mito de Narciso é uma alegoria para a paixão obsessiva do ser humano por si mesmo e pelo belo. O belo se transmuta em toda forma de arte e de comunicação estética. Este é um poder irresistível para qualquer criatura viva que tem alma lírica, épica ou dramática.
Ah, a arte… A dona do mundo!
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