A vida é Caramelo

O Brasil e o mundo inteiro têm observado, nos últimos dias, as enchentes catastróficas que devastaram o Rio Grande do Sul. Há muita comoção, há muita gente determinada a ajudar como pode e com o que pode, há muito político querendo tirar o seu da reta, há muita gente querendo usar o sofrimento alheio como ganho político e autopromoção e, claro, há muita análise sobre. Uma delas é que é muito nítida a diferença do fervor da solidariedade que é direcionada pela mídia, sociedade e governos à população gaúcha em comparação com a que é direcionada à população nortista quando enfrenta este tipo de situação.

Não estou aqui querendo medir sofrimento – e óbvio que sei que o número de pessoas afetadas no estado sulista é muito maior, tendo em vista a proporção da população – porém, neste ano de 2024, Rio Branco enfrentou a segunda maior enchente de que se tem registro e, sinceramente, não vi tanta comoção por parte dos meios de comunicação, dos políticos e da sociedade em geral. Nestas horas o sofrimento é quantitativo? É porque um menor número de pessoas morreu ou perdeu tudo, casas, pertences, que essas vítimas merecem menos atenção? Ou será que no Brasil observamos um “fenômeno” parecido com o da Europa, que se sensibiliza enormemente com as vítimas ucranianas da guerra contra a Rússia, porém faz vista grossa para as vítimas palestinas trucidadas por Israel?

O que também me chamou a atenção é a quantidade de pessoas envolvidas no salvamento de animais, e aqui eu admito: até há muito pouco tempo eu engrossaria o caldo daqueles que acham que os seres humanos deveriam ter absoluta prioridade. Ora, até onde eu saiba, nenhuma outra espécie é responsável pela destruição dos nossos biomas ou têm atitudes exploratórias do planeta que provocam este tipo de calamidade. E se concordarmos que as pessoas, as crianças inocentes, especialmente, não podem assumir esta culpa pelo comportamento destruidor da humanidade, também temos de concordar que, muito menos, os bichinhos, que têm vivências sustentáveis com o meio-ambiente e, no máximo, são vítimas da exploração em razão da ganância humana. Este pensamento de que os nossos iguais – ou melhor, os que nós consideramos nossos iguais – merecem mais e melhor é o responsável secular pelo colonialismo e por todo tipo de opressão e miséria perpetuadas no mundo em que vivemos.

Assisti emocionada, junto com milhões de pessoas, pela internet, o resgate do cavalo caramelo. Entendo a relação do povo gaúcho com os cavalos, companheiros históricos, e a do brasileiro com o caramelo, instaurado com o cachorro que virou um símbolo nacional. No último ano eu conheci um tipo de amor completamente diferente com um gato caramelo que, apesar de ser mais pra mostarda, também é bem “vira-lata” e foi resgatado de uma rua em Madureira, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Os simbolismos são fortes e amplamente conceitualizados, mas, nestes casos, no final das contas, o que importa é a vida. Uma vida foi salva. Uma vida que é igualmente importante, não importa se ela se comunica ou demonstra seus afetos de formas que podem ser incompreensíveis, às vezes, para os seres humanos. Uma vida que merece respeito e que é vítima da ação predatória que o homem exerce sobre o planeta e que provoca tragédias como a do Rio Grande do Sul, a do Acre e tantas outras que continuarão a inundar os noticiários por causa da ineficácia dos governos e grandes corporações em tomarem medidas concretas para reverter a catástrofe ambiental iminente.

“Todas as vidas importam”, infelizmente, virou um bordão racista esbravejado por pessoas completamente sem-noção (para não adjetivar de outras coisas) em contrapartida ao “black lives matter” (“vidas pretas importam”). Mas assim como uma senhora estrangeira, loira, de sessenta e cinco anos, nas areias de Copacabana recuperou as cores e os símbolos nacionais para os nichos marginalizados da sociedade neste maio de 2024, restauremos o sentido de que o respeito pela vida deve ser maior do que qualquer divisão biológica, social, geográfica, política, econômica, cultural. Todas as vidas importam e todas as vidas têm igual importância. Que não seja preciso haver mais e mais tragédias para que tratemos a vida no planeta Terra com respeito e para que, de uma vez por todas, tenhamos tolerância zero para as ações daqueles que ameaçam a vida de quem ou do que for.

Foto: TV Globo/Reprodução