Neste texto, irei falar sobre a mudança de paradigma da aplicação do direito após a segunda guerra mundial, que devastou a humanidade na primeira metade do século XX, e também viria a revisar as bases metodológicas de aplicação do direito, sobretudo o método silogístico do positivismo jurídico kelseniano.
O que entendemos hoje por teorias da argumentação jurídica, que fundamentam o paradigma do pós-positivismo, é um método de interpretação e aplicação do direito alternativo ao método silogístico, que tem seus rudimentos fundamentalmente nos trabalhos de Chaïm Perelman, Theodor Viehweg e Toulmin, após os anos 50 do século XX.
Falarei neste texto sobre a tópica de Viehweg, que, ao lado da nova retórica de Perelman e da lógica informal de Toulmim, compõe o conjunto de trabalhos que rejeitam a lógica formal e deram origem ao que se tem hoje por teoria da argumentação jurídica. Essas teorias representam a virada metodologia para as bases do que conhecemos, hoje, como pós-positivismo.
Viehweg, que foi juiz, publicou, em 1953, após se dedicar ao estudo da Filosofia durante a segunda guerra mundial, sua obra Tópica e Jurisprudência, pretendendo reivindicar o interesse que tinha a ressurreição do modo de pensar retórico. A ressurreição da tópica é um fenômeno que ocorre na Europa do pós-guerra em diversas disciplinas, não apenas no Direito. A obra de Viehweg aparece muito pouco depois da irrupção da lógica moderna no mundo do Direito. A contraposição entre lógica e tópica é uma das idéias centrais da obra de Viehweg. As ideias do jurista nascido em Leipzig têm uma semelhança óbvia com as defendidas por Edward Levi. Na opinião de Levi, tanto no campo do Direito jurisprudencial quanto no da interpretação das leis e da constituição, o processo de raciocínio jurídico obedece a um esquema básico, que é o de raciocínios por exemplos (problemas, topoi). Trata-se de um processo em três passos: primeiro se descobrem semelhanças entre os casos; depois se exprime a regra do direito implícita no primeiro; por último, ela é aplicada ao segundo. Notemos como esta forma de raciocinar o direito é útil para os casos de difícil solução, ao menos no ponto de partida.
Nesse curso de ideias, o Direito não se apresenta como um sistema fechado, nem como um raciocínio jurídico meramente dedutivo, pois a lógica jurídica seria uma lógica peculiar, enraizada no próprio processo de desenvolvimento do método jurídico.
Theodor Viehweg e sua concepção tópica do raciocínio jurídico no desenvolvimento histórico da tópica
A obra de Viehweg é um marco de renascimento da tópica, que propunha a necessidade de intercalar nesse novo método o exame de uma coisa sob ângulos distintos.
Na antiguidade, as duas grandes contribuições para a tópica são as obras de Aristóteles e de Cícero, com destaque para a apresentação dos argumentos dialéticos (da tópica), que, diferente dos apodíticos, partem do simplesmente provável ou verossímil e não de premissas verdadeiras.
Características da tópica:
Há três elementos característicos da tópica apontados por Viehweg, quais sejam: uma técnica do pensamento problemático; a noção do topos, ou lugar comum, e a técnica do exame das premissas. A noção sobre a tópica se opõe à noção de sistema, porque a tópica é um modo de pensar problemático e não sistemático.
Tópica e jurisprudência
Viehweg, a partir do pensamento da tópica, diz que a jurisprudência na Roma Antiga e do período medieval foi essencialmente tópica. A partir da modernidade, a cultura ocidental optou por abandonar a tópica e substituí-la pelo método axiomático-dedutivo, que consiste em uma série de princípios e axiomas que devem ter as propriedades de plenitude, compatibilidade e independência. O propósito característico da era moderna é atuar com o método dedutivo, e dotar de caráter científico a ciência jurídica, e, assim, equívoco, porque obrigaria a uma série de operações e mudanças no Direito que são inviáveis (falamos sobre isto no texto por que devo obedecer ao direito II).
Os pressupostos da tópica de Viehweg são os seguintes: a estrutura total da jurisprudência só pode ser determinada a partir do problema; as partes integrantes da jurisprudência, seus conceitos e proposições, precisam ficar ligadas de um modo específico ao problema e só podem ser compreendidos a partir dele; os conceitos e as proposições da jurisprudência só podem ser utilizados numa implicação que conserve a sua vinculação com o problema (jurisprudência, para este texto, é sinônimo de ciência do direito, ou teoria do direito).
Manuel Atienza propõe algumas considerações críticas sobre a obra de Viehweg.
Impressões conceituais
O autor diz que praticamente todas as noções básicas da tópica são imprecisas e equívocas. Pode-se entender a tópica de Viehweg e seus seguidores em três coisas diferentes:
Uma técnica de busca de premissas
Uma teoria sobre a natureza das premissas
Uma teoria sobre o uso dessas premissas e fundamentação jurídica.
A partir da menção dos três elementos da tópica, Atienza problematiza a aplicação destes na busca pela compreensão do fenômeno jurídico.
A fortuna histórica da tópica e da lógica
Para Atienza, a ruptura da tradição da tópica ou da retórica na época moderna parece ter sido acompanhada pelo afastamento da lógica. Na opinião de Lorenzen, diz Atienza, a lógica formal caiu no esquecimento precisamente em nome da ciência, isso porque a nova ciência não partia de um modelo axiomático, pois foi substituído pela lógica analítica nos séculos XVII e XVIII.
Quanto aplica o modelo da tópica em busca da justiça, Atienza conclui que o trabalho de Viehweg é sobejamente ingênuo e até mesmo como um raciocínio truísta, quando a busca pelo critério justo deve ser extraído da própria idéia de justiça que lhe imanta.
Uma teoria da argumentação jurídica?
Atienza diz que a tópica permite explicar certos aspectos do raciocínio jurídico que passam despercebidos quando abordamos esse campo por uma vertente exclusivamente lógica. Ela permite ver que não há apenas problemas de justificação interna. Mas, ela se limita a sugerir um inventário de tópicos ou de premissas utilizáveis na argumentação, mas não fornece critérios para estabelecer uma hierarquia entre eles.
Sobre o desenvolvimento da lógica jurídica, Atienza diz que a obra de Viehweg inaugura um raciocínio tendencioso a descartar a prevalência do nível pragmático da linguagem em relação ao sintático ou semântico, enfatizando o caráter de dependência em relação à situação de toda argumentação e a crítica à ontologização a que tende uma compreensão ingênua da linguagem.
Sobre o caráter descritivo e prescritivo da linguagem, Atienza observa que a obra de Viehweg contém uma tese descritiva sobre em que consiste o raciocínio jurídico e uma tese prescritiva sobre em que deveria ele consistir. Esta última tese não se diferencia claramente da anterior, pois, a proposta não é modificar e sim conservar o estilo de pensamento tópico que pode encontrar na jurisprudência.
O que resta da tópica jurídica?
Feitas todas as críticas, Atienza julga que a obra de Viehweg contém algo de importante, que é a necessidade de raciocinar onde não cabem fundamentações conclusivas, e a necessidade de explorar, no raciocínio jurídico, os aspectos que permanecem ocultos se examinados sob perspectiva exclusivamente lógica. Assim sendo, é imperioso reconhecer que na tradição de pensamento da tópica jurídica inaugurada por Viehweg podem-se encontrar sugestões e estímulos de inegável valor para quem deseja praticar o raciocínio jurídico. O mérito fundamental de Viehweg, informa Atienza, não é ter construído uma teoria, mas, ter descoberto um campo para a investigação, algo que parece se encaixar no espírito da tópica.
A obra Tópica e Jurisprudência é um dos importantes documentos da mudança de paradigma metodológico do direito na segunda metade do século XX, inaugurando o período que Eric Hobsbawm chamou de Era dos Direitos, em sua obra homônima. As teorias da argumentação jurídica prepararam o ambiente do direito para o que conhecemos, hoje, como pós-positivismo: a era do protagonismo dos princípios jurídicos com força normativa.
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