A mitologia sempre entremeou meu mundo. Desde muito garota, mais precisamente aos 12 anos, eu já era “sócia” do Círculo do livro, nome que a editora Abril deu para um clube de assinaturas de livros que existiu até o ano de 1996, e os livros sobre mitologia eram os meus favoritos. Assim, pensar os acontecimentos do cotidiano a partir de uma visão mitológica é fascinante para mim e, por isso, decidi falar da perda através dos mitos.
Alguns dias atrás, as parcas Cloto, Láquesis e Átropos, filhas de Têmis (a Lei), mulheres que tecem o fio do destino humano e que, com suas tesouras, cortam-no quando bem entendem, decidiram que a tecitura de uma pessoa muito querida havia chegado ao fim. Ou fora talvez a deusa Héstia (Vesta para os romanos) quem deixou a fogo sagrado da lareira se apagar? O certo é que o tênue fio da vida foi rompido e a ânima desincorporou.
Fiquei imaginando se Zéfiro, o vento Oeste, estaria acordado para que com sua conhecida doçura pudesse soprar o barco de Caronte – barqueiro velho e esqualido, porém vigoroso, que leva passageiros de toda espécie e que, de tantos, parecem bando de aves quando migram diante da aproximação do inverno – sobre as águas do rio Aqueronte rumo ao mundo de Hades.
É esperado que Caronte não demore para transportá-la das margens do rio, visto que as almas acolhidas no barco, de acordo com as leis de Plutão, são somente aquelas que receberam os ritos fúnebres, e essa condição foi realizada. Mas será que se vai direto à cidade dos eleitos ou, também de acordo com algumas histórias mitológicas, é preciso atravessar as regiões melancólicas, como fez o herói Virgílio, até chegar aos campos Elísios onde moram os felizes?
O certo é que a menor possibilidade da perda de um momento para outro de um familiar ou um amigo acentua a escassez do tempo. Freud no seu texto mais belo e otimista, chamado Transitoriedade, não se perturba diante da efemeridade da beleza da primavera com a chegada do inverno e tampouco com o desaparecimento de tudo de mais estupendo criado pelo homem. Entretanto, não escapou a ele o momento em que seu amigo poeta foi atravessado pela ideia precoce de luto ao se dar conta da própria impermanência diante da paisagem, a ponto de lhe impossibilitar desfrutar a exuberante beleza do momento.
Sim, mudamos como mudam as estações e um dia o frio do inverno nos invade. A perda de algo que se ama ou se admira é um enigma não decifrável, mas ao observá-lo é possível vislumbrar outras sombras. Todos somos capazes, mesmo na tenra infância, de desviar o amor do Eu para objetos e, no caso da perda desses, liberar mais uma vez a capacidade libidinal e, então, substituir o objeto ou retornar a atenção ao Eu. Porém, ainda assim, o luto permanece uma incógnita.
Cada um tem um percurso, mas é importante respeitar que cada um tem um tempo e um processo de luto. Chegar ao recomeço é muito doloroso porque é uma mistura de dor física e mental. O que realmente não devemos fazer é lutar contra a tristeza. Podemos e devemos ficar tristes. É importante viver o luto porque só assim teremos oportunidade de fazer um novo começo, um new beginning, como se diz na psicanálise, porque mudaremos muito do que éramos. Seremos quase reconstruídos.
Culpar-se nesse momento, apesar de muito comum, só dificultará o processo. Importante é escutar o outro ou escutar-se e questionar-se sobre a finitude da vida, sobre o que perdemos com a ausência do outro e como é possível recriar aquilo que se foi dentro de nós para que, a partir daí, seja possível encontrar nova forma de viver, inventando novos hobbies na vida, reencontrando nova linguagem ou experiência, indo atrás de sonhos, porque sonhos não envelhecem, enfim, reinventando novo início.
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