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Que tal sair de casa, entrar em uma sala escura de cinema e se deixar levar pela torrente de imagens, palavras, sons e ruídos em mais uma experiência cinematográfica radical assinada por Luiz Fernando Carvalho a partir do texto de Clarice Lispector e a interpretação arrebatadora de Maria Fernanda Cândido? Estamos falando de “A Paixão Segundo G.H.” que está em cartaz no circuito alternativo em Belém e tem a missão de desafiar as reações e sentidos do espectador mais atento sobre as infinitas possibilidades do fazer cinematográfico no Brasil.  

Já na abertura, imagens surrealistas invadem a tela propondo um acordo estético com o cinéfilo, adiantando que daquele momento em diante nada será o que entendemos como linguagem linear, linguagem clássica com começo, meio e final no esboço de uma narrativa pronta e acabada. A ordem aqui é a experimentação, riscos, acréscimos e diluições necessários para adaptação de uma obra icônica. A adaptação como reinvenção da gramática literária e cinematográfica.

Essa reinvenção, pois opera como aperfeiçoamento do manuseio das atuais câmeras digitais, pode ser vista na criação de uma lente específica, com as funções de grande angular e teleobjetiva em diversas camadas visuais que enriquecem outras leituras sobre a obra de arte.

Os primeiros minutos de projeção sinalizam a proposta de um pacto ficcional aberto para experimentações narrativas com o espectador, com apresentação da personagem em performance solo: o primeiro dia do resto da vida de G.H. após o rompimento de uma relação amorosa, o adeus da subalterna dos chamados serviços domésticos, o conforto interno de um apartamento com vista para o mar e a continuidade das tarefas cotidianas para a organização do mundo.

Assim, embarcamos numa viagem sem redes de proteção em que G.H. desce aos infernos a partir da entrada no quarto da empregada Janair (Samira Nancassa), da qual nem se lembrava direito do nome, o que a tornava ainda mais sem visibilidade no mundo de luxo, cultura e badalação da alta burguesia carioca.

O filme é de um existencialismo desesperador, que se materializa simbolicamente no conflito entre a protagonista e a figura de uma barata, inseto a provocar o horror por sua forma repugnante e o expelir de uma substância gosmenta que remete aos clássicos literários e cinematográficos dos gêneros horror e terror.

Filmes de terror e horror lidam com fenômenos sobrenaturais e estão inseridos em atmosferas de pesadelos, fobias ocultas, repulsa e o medo do desconhecido, como em “Possessão”, de cineasta polonês Andrzej Zulawski. No filme de Luiz Fernando Carvalho, assistimos a transição do que é terrível para o horrível, por meio do choque por estar em contato com o que é graficamente assustador.

O que é repulsivo e assustador nesse cinema que abre as portas para as teorias da psicanálise, caracteriza-se pela impressão de que a jornada dantesca de ansiedade, medo e desespero de G.H chegou ao fundo do poço. E é lá que a possibilidade de saída pode estar no exercício da linguagem, no caso, das linguagens que se misturam e colocam na tela a literatura, a desconstrução dos manuais de interpretação, outras maneiras do exercício cinematográfico no Brasil, as referências de Ingmar Bergman, Walter Hugo Khouri, Luchino Visconti, e a música de Gustav Mahler e Elis Regina & Tom Jobim.

Um filme de fôlego, provocante. Cinema fantástico que almeja a imersão da arte total que não se conforma com a narrativa redonda e conformista de grande parte da produção nacional atual.

Não perca esse filme!

José Augusto Pachêco
José Augusto Pachêco é jornalista, crítico de cinema com especialização em Imagem & Sociedade – Estudos sobre Cinema e mestre em Estudos Literários – Cinema e Literatura. Júri do Toró - 1º Festival Audiovisual Universitário de Belém, curadoria do Amazônia Doc e ministrante de palestras e cursos no Sesc Boulevard e Casa das Artes.

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