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Não sei de vocês, mas eu tenho há anos um grupo de amigos que joga semanalmente na Mega-Sena. Na infeliz impossibilidade de nos vermos com mais frequência, nos reunimos via WhatsApp – essa controvertida invenção que ainda vai ser execrada em praça pública, reconhecida como responsável direta por 50% das doenças coronarianas, 60% dos distúrbios psicossomáticos e comportamentais e 70% das crises de burnout e síndrome do pânico – e tratamos de tentar enriquecer facilmente – objetivo vil que é culpado pelo saldo percentual remanescente de todos os males e enfermidades que acabei de citar.

Preciso ser honesto e deixar claro que os dados estatísticos aqui apresentados não tem base científica reconhecida e nem procedência induvidosa. Não foram auditados ou registrados em órgãos públicos fiscalizadores. Longe disso, decorrem apenas do meu mais puro e descarado achismo, da minha sofrida experiência pessoal, aferidos que foram em horas conturbadas e penosas, incontáveis fins de expediente em que me vi derrotado por dezenas de mensagens que não dei conta de ler, quiçá de responder.

É bem verdade que algumas delas não têm relevância – textos de autoajuda, amenidades em geral, pecados pornográficos e rasgadas paixões políticas, ideológicas e futebolísticas -, mas em meio a essa avalanche de inutilidades perdem-se avisos e recados que realmente precisavam ou mereciam ser lidos e respondidos, e isso não deixa de ser frustrante, sobretudo para quem esperava uma merecida resposta.

Eu não tenho conseguido, confesso e me penitencio – mea culpa, mea maxima culpa. Encerro o dia, invariavelmente, com um balãozinho verde a indicar que 50 ou 60 mensagens ainda demandam atenção. O problema é que depois de nove ou dez horas de escritório, e já beirando os 55 anos de idade, não consigo mais gerenciá-las, não tenho mais saúde física e mental. Peço imensas desculpas aos que deixei sem retorno!

A impressão que tenho é a de que, contidos e limitados pelos relógios durante séculos, os dias rebelaram-se e resolveram, mancomunados com o WhatsApp, durar 36 ou 48 horas, subvertendo o tempo e subjugando os seres humanos. Sei lá onde isso vai parar, mas minhas previsões a esse respeito são sombrias e melancólicas (espero que sejam tão imprecisas quanto meus palpites no grupo da Mega-Sena).

A questão é séria e interfere em diversos aspectos do cotidiano, do bem-estar pessoal à produtividade no trabalho, dos relacionamentos à necessidade de repouso mental, dos níveis de ansiedade à qualidade e intensidade dos momentos de privacidade e convívio familiar. É que as redes sociais e os aplicativos de mensagens são criados para gerar dependência, vício e, consequentemente, adoecimento espiritual.

Sobre o tema o editor e explorador norueguês Erlind Kagge, num pequeno livro chamado “Silêncio – Na era do ruído”, publicado no Brasil pela Editora Objetiva, faz um alerta preocupante: “Quanto mais perturbados, mais queremos distrações. Devia funcionar de maneira contrária, mas na maioria das vezes não é o que acontece. Você acaba entrando em um círculo vicioso de dopamina. A dopamina é uma substância química que transmite sinais de um neurônio para o outro. A dopamina, em suma, oferece tudo que você quer, procura e deseja. Não sabemos quando vamos receber um e-mail, mensagem ou outra coisa qualquer, então ficamos conferindo o telefone, quase como se ele fosse uma máquina de caça-níqueis, em uma tentativa de encontrar satisfação. Mas a dopamina não serve para dar a sensação de satisfação, mesmo que você tenha conseguido o que buscava e desejava, então você não sente satisfação alguma. Eu continuo a fazer buscas no Google, mesmo vinte minutos depois de ter encontrado o que eu procurava. Eu sei que essa é uma situação banal, mas com frequência tenho a impressão de que é mais fácil continuar do que parar.”

Kaage tem razão, estamos nos transformando em zumbis, criaturas pautadas e comandadas por pequenas telas que não nos saem das mãos, e que nos interrompem deseducadamente a todo momento, em qualquer ocasião, desviando-nos atenção e foco, numa tirania que escraviza. Enquanto lemos um livro, em meio a uma refeição em família, assistindo um filme no cinema ou uma peça no teatro, em cerimônias religiosas, aulas e palestras somos repentinamente tomados de assalto pelo impulso de verificar mensagens, checar notícias ou conferir eventos que, no mais das vezes, são descartáveis, insignificantes e, o que é ainda pior, têm muito mais a ver com a vida dos outros do que com as nossas próprias vidas.

“Todos são o outro e ninguém é si mesmo”, escreveu Heidegger. “Nós somos o outro do outro”, completou Saramago – “Você não pode perder nada. Esse consumo prolongado não traz nenhum tipo de felicidade, e segundo Eyal provoca uma sensação de tédio, frustração, passividade e, como já foi mencionado, solidão. Basta olhar ao redor para ter certeza de que ele tem razão. Ou, melhor ainda, olhe para mim e para você. Muita coisa gira em torno do FOMO, Fear of Missing Out – o temor de perder um acontecimento qualquer ou de não acompanhar um momento importante. Eyal descreve essa sensação como a genial força motriz por trás do Instagram. Não é exagero, a ferramenta parece mesmo genial, mas o momento a que ele se refere não precisa ter nada de especial. Pelo contrário. Simplesmente não existem tantos momentos realmente especiais assim, e, como resultado, acontecimentos repetidos e banais acabam ganhando destaque.” (Kaage, op. cit.)

Nesse cenário de alheamento e perda de referências, o caos é tão latente que confunde até mesmo o cronista, flagrado a divagar num texto cuja cabeça parece não estar ligada aos pés. Ora, iniciamos falando num grupo de amigos que insiste em arriscar a sorte nos jogos lotéricos, e que se reúne virtualmente pelo WhatsApp. Depois disso o malfadado aplicativo teria tomado as rédeas do pensamento, assenhorando-se da crônica (ou do breve ensaio), exatamente como ocorre no dia a dia.

Calma lá, não é exatamente assim, embora se deva reconhecer que a abstração foi além do esperado. O que prende uma ideia à outra, a aposta na Mega-Sena ao multicitado aplicativo, ao fim e ao cabo, é a resposta que eu pessoalmente daria àquela tradicional pergunta que todos já nos fizemos um dia: “O que você faria se ganhasse uma montanha de dinheiro na loteria?” Pois bem, eu sei o que faria, tenho até uma lista guardada na gaveta. Assim, se um belo dia tiver essa sorte, não corro o risco de ver a emoção se sobrepor ao meticuloso planejamento que elaborei com tanta ciência.

Não posso tornar públicos todos os itens (privacidade, segurança, cautela e canja de galinha nunca fazem mal…), mas posso divulgar o primeiro deles, talvez o mais valioso e urgente: apagar o WhatsApp e guardar o celular no cofre, como fez um dos homens mais inteligentes e realizados que conheci, meu saudoso sogro, que trancafiou sob chaves e segredos o Motorola PT-500 que as filhas lhe deram de presente, que nunca chegou a ser usado.

Como era sábio meu sogro… ele próprio resolvia quando estar ou não estar acessível… e olhem que ele nem ganhou na Mega-Sena!

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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