É claro que já passou pela cabeça de todos a possibilidade da reencarnação e imaginar quem fomos em outras épocas. Tenho a impressão de ter sido um escocês ali pelo século 18, pois me interesso muito por aquela região, lendo livros e assistindo a filmes e séries. Há algo belo que sinto ao ouvir a famosa gaita de foles, cujo som me atravessa e me deixa paralisado, tocando em algum ponto da minha pessoa. Me emociono quando ouço Enya cantando “Smaointe”, por exemplo. Mas é evidente que não acho que fui um rei, rainha ou qualquer dessas invenções que às vezes nos dizem. Fui um comum, sei lá, quem sabe, tocador de gaita de foles. Tenho paixão também por Paris nos anos 20 do século passado. A cidade havia passado pela Primeira Guerra Mundial e recuperava seu encanto. Era também o refúgio de escritores, músicos e intelectuais que enfrentavam problemas com o conservadorismo de seus países de origem. Havia uma onda de puritanismo, talvez em decorrência da guerra. Muitos americanos foram para Paris. Muitos gays, uma vez que nos Estados Unidos, além da Lei Seca que proibia a bebida, havia um código de decência absurdo por parte de políticos que faziam disso suas plataformas de eleição. Paris era a Cidade Luz. A cidade das liberdades. Da democracia e costumes mais livres. Era onde moravam Gertrude Stein e sua namorada,
Alice Toklas, milionária que reunia em torno de si as melhores cabeças da cidade. Suas paredes eram cheias de Picassos e todos os outros pintores que adiante se tornariam famosos mundialmente. Lá chegou também Sylvia Beach, americana que procurava exatamente o que gostaria de fazer na vida. No dia em que entrou em uma livraria, encontrou não somente seu objetivo mas também seu grande amor, Adrienne Monnier, livreira. Primeiro a idéia era abrir uma livraria especializada em autores franceses em Nova Iorque. Depois, já com a namorada, uma livraria especializada em autores da língua inglesa em Paris. Shakespeare and Company, a lendária livraria que até hoje é ponto turístico. Primeiro em um endereço, depois na Rue Odeon. O lugar tornou-se ponto de encontro para todos aqueles escritores considerados malditos em seus países de origem e que também se tornaram famosos mundialmente. Ezra Pound, Ernest Hemingway, Scott FitzGerald, Andre Gide, por exemplo. Hemingway nem havia lançado seu primeiro livro e já chegou em Paris fanfarrão, mostrando cicatrizes provocadas por uma mina, quando guiava uma ambulância na Guerra. E então conheceu James Joyce. Apaixonou-se pelo escritor de maneiras estranhas, esposa que detestava literatura e dois filhos, bebia mais que devia, tinha uma péssima vista, vítima de glaucoma, mas escreveu o seminal “Ulysses”, que aos primeiros capítulos publicados em um jornal foi alvo de censura nos EUA onde foi acusado de pornográfico. Sylvia decidiu apostar. Até ficar pronto para ser impresso, milhares de correções foram feitas. Joyce nunca estava satisfeito. Para chegar aos leitores que compraram adiantadamente seus volumes, Sylvia e Hemingway os contrabandeavam para os Estados Unidos através do Canadá. A luta contra a censura fez Sylvia sofrer muito, mas em troca, sua livraria tornou-se um ícone. A autora do livro, Kerri Maher romanceia os fatos, tornando a leitura prazerosa. Quanto a mim, tenho diversos livros contando sobre esses dias. O filme de Woody Allen também foi maravilhoso. Sim, eu gostaria de estar ali, convivendo com essa galera. Gostaria também de ter estado com a turma nos anos 20 daqui de Belém. Meu avô era da turma. Devia ser uma delícia o papo. Para quem também gosta, uma boa sugestão de leitura.
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