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Acordei cedo, pouco depois do sol, e por um daqueles maravilhosos acasos que Deus providencia quando quer brincar conosco, a primeira coisa que vi quando peguei o telefone foi uma sugestão abençoada do algoritmo nosso de cada dia. Tratava-se de um vídeo no Youtube em que a norueguesa Angelina Jordan, então com sete anos de idade, cantava What a difference a day makes, um clássico do jazz imortalizado em 1959 pela voz de Dinah Washington.

A interpretação da menina Angelina é sublime, estonteante, tão bonita quanto uma canção é capaz de ser bonita, tão inspiradora quanto a música pode inspirar, tão arrebatadora quanto a arte consegue arrebatar. É daquelas coisas que vão durar para sempre, atemporais, pouco importando quando foram feitas; maiores, enfim, que o tempo de uma vida – “A arte não suporta o efêmero. Ela é uma luta contra a morte”, escreveu Rubem Alves num livrinho delicioso chamado Ostra feliz não faz pérola (3ª ed., Ed. Planeta: São Paulo, 2021).

A pequena descendente dos Vikings seguiu carreira, tem hoje dezessete anos e continua encantando plateias ao redor do planeta, entoando releituras que nos dão uma ideia do que deve tocar no paraíso. Recomendo veementemente que ouçam Bohemian Rhapsody, Fly me to the moon e I put a spell on you. Estão todas disponíveis nas plataformas digitais, e devem ser admiradas preferencialmente à meia luz, temperatura ambiente próxima dos 20 graus Celsius, com uma taça de um bom tinto alentejano ao alcance das mãos.

É caminho certo para encontrar a beleza, essa sensação de prazer que Deus criou e agasalhou dentro das artes, nas entrelinhas da prosa e da poesia, por entre os acordes das melodias, na pigmentação das tintas e nas fibras dos pincéis, no contorno das esculturas, nas tomadas e planos de câmera do cinema, nos movimentos da dança e nos traços da arquitetura. Em tudo isso Deus pôs a beleza à nossa disposição, e urge que sejamos sempre gratos, atentos e sensíveis a percebê-la, a experimentá-la.

No livro já citado, Rubem Alves, aliás um dos operários do belo na literatura, cronista dos mais talentosos, descreveu bem aquilo que estou a sugerir: “Mas o que é a experiência da beleza? Sem uma resposta pronta, veio-me algo que aprendi com Platão. Platão, quando não conseguia dar respostas racionais, inventava mitos. Ele contou que, antes de nascer, a alma contempla todas as coisas belas do universo. Esta experiência é tão forte que todas as infinitas formas de beleza do universo ficam eternamente gravadas em nós. Ao nascer, esquecemo-nos delas. Mas não as perdemos. A beleza fica em nós adormecida como um feto. Assim, todos nós estamos grávidos de beleza, beleza que quer nascer para o mundo qual uma criança. Quando a beleza nasce, reencontramo-nos com nós mesmos e experimentamos a alegria.”

À quimera criada por Platão, Rubem acresceu seu contributo: “Há seres privilegiados – eles bem que poderiam ser chamados de anjos – aos quais é dado acesso a esse mundo espiritual de beleza. Eles veem e ouvem aquilo que nós nem vemos nem ouvimos. Aí eles transformam o que viram e ouviram em objetos belos que os homens normais podem ver e ouvir. É assim que nasce a arte. Ao ouvir uma música que me comove por sua beleza, eu me reencontro com a mesma beleza que estava adormecida dentro de mim.”

É uma explicação e tanto, sem dúvida, e bem comprova um fato do qual eu já desconfiava: anjos realmente existem e sempre estiveram entre nós. Angelina Jordan, no vídeo que assisti ao despertar, parecia realmente um querubim, exatamente como previsto na classificação bíblica, que elenca querubins como guardas e mensageiros dos mistérios divinos, incumbidos da missão especial de transmitir sabedoria (sabedoria e beleza, eu diria).

Em todas as artes há, por certo, inúmeros e inquestionáveis exemplos dessa verdade, autênticos serafins, arcanjos, tronos, dominações, potestades e virtudes, integrantes das diversas classes e hierarquias angelicais, a passar dias e noites buscando nos vastos domínios celestiais a beleza exuberante que derramam sobre nós generosamente, por meio das artes e do amor.

Não pode ter sido casual, outrossim, a inspiração da poetisa paranaense Helena Kolody (1912-2004), também lembrada por Rubem Alves, que em dois versos definiu com precisão tudo aquilo que estou gastando linhas e mais linhas para tentar assentar como premissa: “Rezam meus olhos quando contemplo a beleza. A beleza é a sombra de Deus no mundo.”

Em tudo na vida, portanto, o que nos cabe é contemplar o que de bonito o mundo coloca diante de nós, admirar o quanto de belo nos é dado vivenciar, apreciar tudo de gracioso que nos cerca, mesmo nas adversidades, afinal tristeza, angústia, solidão e melancolia também são fontes de beleza, na exata medida em que são mananciais valiosos e abundantes de inspiração artística, como bem o sabem os gregos, especialistas em extrair beleza das tragédias humanas, tal qual a ostra que deu nome ao livro mencionado no início, aquela que sofre as dores oriundas dos corpos estranhos que lhe penetram o organismo, entre a concha e o manto, pequenos grãos de areia, parasitas e fragmentos de coral ou rocha.

A resposta da ostra supostamente infeliz, seu mecanismo natural de defesa, é exatamente a pérola, invólucro orgânico criado ao redor do tal corpo estranho para isolá-lo e impedir que siga causando dor e mal-estar. Pelo valor que tem a pérola é possível então mensurar o valor que pode ter o sofrimento, desde que experimentado com sabedoria e resiliência, tanto melhor se com o auxílio das artes ou o acalanto do amor, nascente e foz de toda a beleza, por conseguinte triunfo final da alegria sobre a tristeza. Dito isso, só me resta desejar que o algoritmo matinal me siga sendo gentil e afetuoso, fazendo raiar dias tranquilos, repletos de amor e arte, iluminados por um sol que faça parecer menor qualquer desafio, que faça parecer maior qualquer vitória. Depois é só levantar, beijar a esposa e os filhos e dizer a eles que a vida é bela.

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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