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Foi o próprio The New York Times que cunhou a expressão “Doutrina Donroe” para descrever as investidas de Donald Trump sobre a América Latina. Em um mundo cada vez mais multipolar, no qual a influência da China e da Rússia estende seus tentáculos para além de suas zonas tradicionais, os Estados Unidos, sob o segundo mandato de Trump, ressuscitam uma página esquecida da velha liturgia diplomática: a Doutrina Monroe. Proclamada em 1823 por James Monroe, ela delineava o continente americano como quintal exclusivo dos Estados Unidos, uma joia sob tutela permanente de Washington. Dois séculos depois, o que o NYT batizou de Doutrina Donroe, um trocadilho espirituoso com o sobrenome de Trump, atualiza essa visão e a converte em instrumento de afirmação agressiva do poder hemisférico.

A expressão surgiu em uma reportagem de 17 de novembro de 2025, The Donroe Doctrine: Trump’s Bid to Control the Western Hemisphere, que descreve como Trump, desde a posse, adotou uma estratégia de prêmios e punições à moda de um monarca medieval. Aliados recebem incentivos econômicos e militares, enquanto desafetos são brindados com sanções, ameaças de invasão e pressão diplomática. Essa dinâmica ganhou corpo na Operação Lança do Sul, que posicionou oito por cento da frota de guerra americana no Caribe, incluindo o porta-aviões USS Gerald R. Ford, destróieres, submarinos nucleares, caças e drones. O discurso oficial fala em combate ao narcotráfico e contenção migratória, mas observadores notam a tentativa de reverter a influência chinesa e recuperar o controle estratégico do Canal do Panamá.

Diferente da Monroe original, que em certa medida tinha caráter defensivo, essa versão trumpiana é ofensiva e isolacionista. Trump defendeu retomar o Canal do Panamá, sugeriu renomear o Golfo do México como Golfo da América e transformou o Brasil em seu laboratório diplomático. Em julho de 2025, impôs tarifas de cinquenta por cento ao governo Lula, em pressão explícita para influenciar processos envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro. Após a condenação de Bolsonaro, recuou, encontrou-se com Lula e negociou a suspensão das tarifas. A Doutrina Donroe revela aqui seu caráter operacional: não é princípio, é barganha calibrada.

Venezuela, Cuba e Nicarágua integram o rol de adversários internos. O reforço de sanções e o apoio a opositores resgatam memórias das operações clandestinas da CIA entre as décadas de 1950 e 1970. A tensão chegou ao auge na Colômbia, em outubro de 2025, quando Trump acusou o presidente Gustavo Petro de chefiar o narcotráfico, suspendeu toda a ajuda financeira ao país e insinuou uma invasão. O chanceler Armando Benedetti classificou o gesto como “Monroe 2.0”, e não sem razão: trata-se da maior movimentação militar no Caribe desde 1980.

Críticos observam que a Donroe repousa na crença quase aristocrática de que Washington possui direitos naturais sobre sua vizinhança. Veículos como CartaCapital e DW alertam para o risco de reacender ressentimentos antiamericanos e mergulhar a região em instabilidade política. Historicamente, a Monroe evoluiu para o Big Stick de Theodore Roosevelt, justificando intervenções sucessivas no Haiti, Panamá e Guatemala. Hoje, ela se reencena sob a estética do America First de Trump.

Há um certo glamour que distingue a Donroe do passado. Essa doutrina nasce nas luzes dos salões de Mar-a-Lago, entre colunas neoclássicas, champanhes geladas e uma plateia de bilionários que circula com a naturalidade de quem frequenta uma corte paralela. Mar-a-Lago funciona como o Versailles subtropical do trumpismo. Ali, magnatas do petróleo, financistas influentes e tech bros vestidos como príncipes pós-modernos brindam a reencenação daquilo que consideram a era de ouro do neoliberalismo americano. Os anos de Reagan a Clinton reaparecem convertidos em nostalgia requintada, quase um perfume vintage. A Doutrina Donroe bebe dessa fonte estética e mental, e seu protagonista assume o papel de monarca peculiar. Trump emerge, nessas festas cintilantes, como uma figura híbrida: uma espécie de João Sem Terra do tecnofeudalismo global, um soberano sem propriedades na era das big techs, mas com vassalos que governam feudos digitais capazes de mover fronteiras políticas.

Quando Trump voltou à Casa Branca em janeiro de 2025, a capital federal pareceu encenar uma versão premium de seu próprio passado. Grandes fortunas se alinharam como se disputassem poltronas na primeira fila de uma ópera política. O governo tornou-se, segundo analistas, o mais rico em patrimônio pessoal da história moderna dos Estados Unidos, reunindo executivos de petróleo, tecnologia, finanças e indústria pesada com uma naturalidade que faria inveja à velha aristocracia industrial do século XX.

Essa direção torna-se evidente na política fiscal. A Tax Cuts and Jobs Act de 2017 já havia reduzido a alíquota corporativa de 35 para 21 por cento, gerando ganhos substanciais para acionistas. Em 2025, o Congresso aprovou o One Big Beautiful Bill Act, que ampliou e perpetuou as vantagens fiscais. O Center on Budget and Policy Priorities observa que as medidas acentuam a regressividade tributária, enquanto o Congressional Budget Office alerta para perdas duradouras na capacidade de financiar programas sociais essenciais para os mais pobres.

A retração da rede de proteção social tende a atingir regiões que mais votaram em Trump, especialmente áreas rurais do Meio-Oeste e do Sul. Estudos do CBPP e dados do Census Bureau mostram que o Medicaid expandido e o SNAP reduziram a pobreza e melhoraram indicadores de saúde infantil ao longo da última década. O retrocesso social ameaça desfazer avanços significativos, e o fará com a discrição de um aumento silencioso no custo de vida, mais cruel do que qualquer declaração política.

No comércio exterior, tarifas generalizadas funcionam como imposto indireto. Pesquisadores do Peterson Institute for International Economics alertam que elas encarecem bens essenciais. A Moody’s Analytics projeta desaceleração econômica, aumento de preços e risco de perda de empregos. Nos bastidores, porém, corporações de energia, tecnologia e finanças celebram o momento como se assistissem a um leilão exclusivo cujos convites jamais circulariam no mundo dos mortais.

Com a combinação de desregulamentação e cortes tributários, os muito ricos desfrutam de um ambiente quase paradisíaco. O Census Bureau indica que a desigualdade pós-tributação permanece em patamares historicamente elevados. O Congressional Research Service registra que os efeitos da TCJA foram concentrados nas faixas de renda mais alta, tendência agora amplificada.

Instituições como o CBPP e a Brookings Institution alertam que o país se afasta estruturalmente pelo topo. Estados com menor densidade industrial e tecnológica podem enfrentar dificuldades para manter serviços básicos. O governo defende que desregulamentação e cortes estimulam inovação, mas críticos observam que, sem redes de proteção, a prosperidade torna-se seletiva.

O resultado é um país movido por uma lógica cada vez mais oligárquica, no qual a capacidade de prosperar depende menos de mérito e mais da posição inicial no tabuleiro. A presença ampliada de grandes fortunas nas decisões administrativas aprofunda a sensação de que a política americana se aproxima perigosamente de uma plutocracia formalizada.

Em dezembro de 2025, com a América Latina novamente no centro das atenções e com os ultra-ricos celebrando sob lustres imponentes, a Doutrina Donroe revela-se menos doutrina e mais sintoma. É o retrato de uma época em que geopolítica, nostalgia neoliberal e tecnofeudalismo se entrelaçam sob o olhar de um soberano improvável que se comporta como uma versão contemporânea de João Sem Terra na nova ordem digital. O resto é ruído, espuma e um tin tin que tilinta em taças de cristal Baccarat nos salões de Mar-a-Lago, com uma piscada de Melania em seu traje impecável de haute couture.

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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