No último dia 6 de outubro, vivemos, no Brasil, o período de eleições para escolha dos nossos representantes nos poderes executivo e legislativo municipais. Os ciclos de renovação e alternância dos mandatos ocorrem a cada 4 anos, conforme está definido na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A alternância do poder é uma regra de ouro da democracia. Os Estados Unidos da América também estão em ano eleitoral, conforme a regra da alternância periódica dos mandatos definidas na XXII Emenda à Constituição.
O voto unitário nos EUA não representa sufrágio universal direto, nem é obrigatório, como no Brasil, por opções políticas definidas no início da história daquela nação, sob influência de Publius, pseudônimo de Hamilton, Madison e Jay, que, sob influência de Locke e de Montesquieu, consagraram em seus artigos jornalísticos (The Federalist Papers) um influente manual de teoria política no qual se fundou boa parte da organização dos EUA. Assim, há de se considerar que duas das maiores democracias representativas do mundo estão em festa.
Observação importante: até a edição da XIX Emenda à Constituição dos EUA, as mulheres não podiam votar. Eis uma boa razão para comparecerem voluntariamente e em peso às urnas.
A democracia, ao contrário da monarquia e da aristocracia, se dinamiza quando o povo exerce seu poder soberano escolhendo seus representantes através do voto. No Brasil, o sufrágio é universal, direto e o voto é obrigatório.
Entender como funciona a democracia, em oposição ao despotismo e à tirania, seus rivais, é interpretar a engenharia das sociedades políticas ocidentais.
A representatividade popular define a forma de exercício do poder nas democracias ocidentais desde as revoluções francesa e americana do século XVIII. São mais de dois séculos de democracia representativa, com pequenos intervalos de exceção autocrática.
A democracia ocidental se funda no conjunto de regras que define quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos. São as regras do jogo, pré-definidas em lei.
O modo de exercício do poder pelo povo deve estar previamente definido em um documento jurídico, onde se delimitam todas as regras do jogo democrático. A Constituição de um estado soberano é o manual de instruções do jogo.
Se é verdade que a democracia é um jogo, também é verdade que os jogadores são o povo, em condições de igualdade no ponto de partida para todos os jogadores. Por exemplo: nos EUA, preenchidas as demais condições legais, qualquer pessoa a partir dos 35 anos pode se candidatar ao cargo de presidente da república.
A democracia está em crise?
Apesar de muitos anúncios de falência e de morte, a democracia, sempre dinâmica, sobrevive e se impõe com longevidade. Todas as vezes que foi ferida de morte, renasceu como fênix.
Norberto Bobbio, em seu opúsculo O Futuro da Democracia, defende a tese de que a democracia precisa melhorar, mas ainda é o melhor arranjo que temos para o exercício do poder político. Defende que a crise da democracia é uma expressão de sua constante transformação.
Levisty e Ziblatt, por outro lado, autores de Como as Democracias Morrem, trazem hipóteses à transformação dos modos de ataque à democracia na era da informação.
Cotejando ambos, e compreendo a lacuna histórica entre as duas obras, compreendo que há duas dimensõespara o debate sobre a democracia: a dimensão procedimental e a dimensão substantiva.
A questão substantiva abrange, além do procedimento e da forma de exercício da democracia, a manifestação da vontade. Neste segundo aspecto, a democracia substantiva contempla o âmbito da manifestação livre do pensamento, no momento do voto. O controle das comunicações de massa (redes sociais), a desinformação e as fake news seriam ataques à democracia substantiva.
Bobbio, em seu debate diacrônico, demonstra a dimensão substantiva da democracia na política desde Platão, passando por Hegel, na modernidade, para dizer que a democracia perfeita é ideal, e que a dialética integra a regra do jogo político; é do embate entre opostos que se sustenta a síntese do discurso democrático, diz o autor.
Podemos afirmar que a maturidade do debate democrático acompanha o processo de evolução das sociedades complexas. É nessa politeia que os grupos antagônicos elaboram discursos de poder político.
Devemos observar que o jogo do discurso não ocorre em arena livre. Por exemplo, os Estados e os Organismos Internacionais estão criando ferramentas de controle dos métodos de elaboração do discurso no jogo eleitoral, combatendo as fake news, uso de dados e o abuso de poder.
Os EUA, por exemplo, já investigaram o uso de dados pessoais no processo eleitoral daquele país. No Brasil, o poder judiciário e o ministério público se mantém vigilantes quanto aos conteúdos digitais, delimitando o exercício de direitos fundamentais. Recentemente, uma das maiores redes sociais do mundo teve suas atividades encerradas no Brasil, por desconhecer, ou não se submeter, à nossa técnica de tutela judicial de direitos fundamentais como a liberdade de expressão, quando em concorrência com outros direitos fundamentais.
Na cena global, o Pacto Para o Futuro contempla regras de coerção globais para a IA e para o uso regular da Internet. Os signatários do Pacto Digital Global assumem um compromisso em garantir o acesso regular aos bens públicos digitais e as infraestruturas públicas digitais. Comprometem-se em preservar as normas de código aberto e a governança de dados.
O Pacto também traz medidas ambiciosas para tornar o espaço digital mais seguro para todos através de uma maior responsabilização das big techs, das plataformas de redes sociais e de ações globais para combater a desinformação e os danos online.
É nesta ágora de debates que os grupos antagônicos dinamizam a democracia substantiva. Os estados-nações globais iniciam um processo rigoroso de regulamentação do uso de dados, do fluxo desses dados e de conteúdos veiculados na rede mundial de computadores, inclusive por IA. Bobbio diria, com razão, que esta é mais uma crise de transformação da democracia.
A democracia do futuro
A obra de Bobbio é dos anos 90, quando a democracia moderna já era bicentenária, mas, na minha avaliação, é bastante atual e prospectiva, sobretudo porque ele apresenta problemas recorrentes da democracia e demonstra quais são as cariátides que mantêm o edifício de pé.
A premissa maior de Bobbio é a de que a democracia, desde o berço, em Atenas, está sempre em transformação. Isto quer dizer que a democracia é dinâmica, enquanto o despotismo e a tirania são estáticos.
Depois do trabalho de Bobbio, a democracia já passou por uma grande revolução: a Internet, e passará pela revolução da inteligência artificial, mas sobreviverá, como sobreviveu à revolução industrial e a duas grandes guerras mundiais.
Devo justificar a minha frequente remissão a Bobbio: ele foi um dos principais teóricos contemporâneos do direito e da filosofia do direito. Ler Bobbio é sempre uma oportunidade para conhecer uma rara erudição, que trafega com desenvoltura e demonstra o estado da arte da história, da mitologia e da filosofia ocidental em suas análises. É contraindicado para quem acha prolixo transitar pela história e pela filosofia, além das inúmeras referências a várias fontes bibliográficas e notas de rodapé. Ele foi o maior estudioso de Hobbes: o pai intelectual do estado moderno. O autor demonstra domínio de pelo menos 2.600 anos da história e da organização política do Ocidente em todos os seus manuais que já li.
Bobbio nos ensina algumas lições importantes sobre o jogo democrático:
- Os que acusam a democracia de ser sempre frágil, corruptível e corrupta, são os mesmos que pretendem destruí-la a pretexto de torná-la perfeita. Bobbio, citando Hobbes, compara-os ao mito das filhas de Pelia, que cortaram em pedaços o velho pai, para fazê-lo renascer. Logo: a democracia é atacada pelos malsucedidos e mal intencionados.
- A democracia pressupõe um modelo de sociedade pluralista e política, fundada em princípios de igualdade e liberdade e no contratualismo moderno, pelo qual os indivíduos abrem mão do estado de natureza, como opção à liberdade civil. É por esta razão que as democracias são mais fortes onde as constituições trazem um rol de direitos fundamentais e de mecanismos de defesa desses direitos. Logo: a democracia preconiza o pluralismo político e o primado do direito.
- A democracia moderna é representativa. Portanto, as deliberações coletivas não são tomadas diretamente pelos que fizeram parte do processo decisório, mas pelos eleitos. Eles o fazem Exercendo um mandato, em nome de quem, exercendo direitos políticos, os elegeu para tal fim. Logo: a democracia representativa opera pela regra do mandato.
- O Estado moderno se organiza em grandes núcleos de poder. Orgânica e numericamente, as sociedades modernas numerosas, policêntricas e complexas, inviabilizam a democracia direta, como na antiga polis grega. Logo: a democracia é representativa e, em alguns casos, majoritária. Exceto nos EUA, pela regra de colégio eleitoral.
- A democracia, após a influência Stuart Mill, cuja doutrina liberal do estado mínimo tende à anarquia, apresenta incompatibilidade com a democracia pluralista de partidos políticos, cujas bases se assentam na forte presença do estado pelo assistencialismo estatal de massas. Contudo, ambos referenciais: o liberalismo e a democracia têm se reinventado nas últimas décadas, muito por conta do neoliberalismo e do rearranjo do pluralismo político, sob influência dos atuais movimentos sociais, cujas demandas são pontuais e coletivas. Logo: a democracia se dinamiza com a economia.
Um novo pacto global: eis porque considero Bobbio um verdadeiro Tirésias da filosofia política. Antes da revolução da Internet, o velho ouriço de Turim já falava sobre a necessidade de um novo contratualismo, ou um novo pacto global, revendo as cláusulas do contratualismo original. Quais seriam os novos termos desse pacto?
Um novo pacto social, dizia o amigo de Turim, lá nos anos 90, impõe que o estado, no contratualismo atual, além de proteger as liberdades individuais e garantir a propriedade privada, avance para mecanismos jurídicos de distribuição das riquezas e de redução das desigualdades no ponto de partida (Bobbio cita Rawls, mas podemos atualizar para Dwonkin e Amartya Sen a proposta de mecanismos redução da desigualdade material).
No plano internacional, Bobbio aponta maior assertividade da ONU e do Conselho Econômico e Social, para atuar em favor dos países em desenvolvimento, ampliando o direito das gentes para uma justiça internacional. Hoje, seguindo essa previsão política de Bobbio, a erradicação da extrema desigualdade, a proteção dos vulneráveis e a erradicação da pobreza figuram entre as principais ações clausuladas no Pacto para o Futuro, das Nações Unidas. A democracia do futuro pretende ampliar suas bases em novas cariátides: a redução das desigualdades e o fim da pobreza, o controle do fluxo de dados e de conteúdos na WEB e a ética na exploração espacial, por exemplo.
O autor debate os dois modelos de estado moderno (mas também avalia a polis antiga): estado de homens e estado de leis. O primeiro modelo opera nas monarquias absolutistas e nas autocracias, nas quais a vontade de um soberano ou ditador é lei. No segundo modelo, há o primado das lei sobre a vontade dos homens. É neste segundo modelo que há espaço para a democracia. A democracia do futuro, de panorama, se desenvolverá em um ambiente político de acesso popular aos bens públicos debatidos aqui: sobretudo a informação e a submissão de todos ao primado da lei e do direito nacionais e internacionais.
Se quiserem ser livres, disse Cícero, obedeçam a lei.
Viva a democracia do futuro!
Leituras:
The Federalist Papers https://a.co/d/alMeCDQ
Como as democracias morrem https://a.co/d/8cKgd1J
O futuro da democracia https://a.co/d/3QLNBo3
Teoria dos Direitos Fundamentais (2024) https://a.co/d/0lDucNE
Considerações Sobre o Governo Representativo https://a.co/d/eibFPu2
A Democracia na América – Edição Integral https://a.co/d/4aycr0v
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