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Na efervescência cultural de Belém dos anos 1920 um grupo de intelectuais e escritores paraenses se destacou tanto por sua irreverência quanto por sua contribuição na arte literária amazônica.

A Academia do Peixe Frito (APF). Para além de um grupo de boêmios, como muitos pensam, essa “confraria informal” reuniu escritores, poetas, jornalistas e artistas em torno de uma proposta que transitava entre o humor, um traço característico do modernismo, a crítica social e paixão pelas letras em um cenário urbano marcado por profundas transformações políticas e culturais.

No momento em que o centro de poder intelectual estava concentrado no eixo Rio-São Paulo, esse grupo paraense reafirmou as letras amazônicas como fonte de expressão literária. Seus escritores traziam em suas obras, o cotidiano, a negritude, o imaginário e a cultura, com lirismo e acidez, promovendo o olhar de quem conhece e vive a Amazônia.  Surgiu como uma espécie de rebeldia ao esnobismo da Belém parisiense e uma ironia as academias formais. Rejeitavam o elitismo acadêmico tradicional, preferindo se reunir em bares e espaços populares da arquitetura belemense.

O grupo de intelectuais era formado por Bruno de Menezes, De Campos Ribeiro, Paulo de Oliveira, Ernani Vieira, Muniz Barreto, Arlindo Ribeiro de Castro, Lindolfo Mesquita, Sandoval Lage, Abguar Soriano de Oliveira Bastos, Jaques Flores, Nunes Pereira, Edgard de Souza Franco, Farias Gama, Severino Silva, Rodrigues Pinagé, Clóvis de Gusmão, Dalcídio Jurandir, Santana Marques e Abguar Bastos. Não podemos esquecer que, mais tarde, houve a participação do professor Vicente Sales como um dos últimos acadêmicos, presença legitimada pelo professor e historiador Aldrin Figueiredo e referenciado por meio da crônica, “A morte do bate-papo”, inserida no livro, Crônicas de um poeta do escritor paraense, Georgenor Franco de 1986.

O grupo se reunia para trocar ideias, recitar poesias, comentar a vida política da cidade e promover saraus literários informais. De Campos Ribeiro, um dos cronistas do grupo, dizia que as reuniões eram “nascidas ao acaso do primeiro motivo julgado digno de comemoração mais ou menos ruidosas pela geração dos novos intelectuais”. A oralidade, a crítica mordaz, o saber local, e a visibilização da cultura e vida na amazônica eram temas profundos desses encontros que frequentemente terminavam em improvisos poéticos.

A Academia do Peixe Frito não teve estatutos ou sede oficial. Reuniam-se à beira do Ver-o-Peso, nas barracas e no bar “Águia de Ouro”, outro ponto de encontro,  o “porto do Açaí”, hoje reconhecido como, “feira do Açaí”, próximo ao necrotério, de frente para a Baia do Guajará; na garagem náutica do Clube do Remo; no Bar Carioca e Bar Flor de Belém, no Barbinha, cujo dono era português, ficava na Travessa Campos Sales, esquina com a 15 de novembro, no centro comercial de Belém; o City Club, à época localizava-se na sede do Clube Monte Líbano, na Avenida 15 de agosto, atual Avenida Presidente Vargas; nos bares, Paraense e Pilsen, que situavam-se na avenida Independência (hoje, governador Magalhães Barata), próximo à Avenida José Bonifácio; o bar Kean  que também fazia parte da área boêmia do bairro de Canudos. De Campos Ribeiro no seu “Gostosa Belém de Outrora “(1966) dizia que Café do Frederico e o Café Buraco eram famosos e localizavam-se na avenida Independência, próximo a Três de maio, eles possuíam características bem diferentes da vizinhança e o Café Manduca que ficava na travessa Campos Sales, esquina com a rua treze de maio, além do largo da Pólvora.

  Ideologicamente a APF agia como uma espécie de contradiscurso à prática da elite amazônica pautada em um período de colonialismo afrancesado, no qual, a riqueza produzida beneficiou, quase sempre, e, preferencialmente, a elite da região.  No grupo liderado por Bruno de Menezes, grande parte dos integrantes era formado de negros, pobres e de periferia, os quais começaram a produzir em suas obras o seu lócus vivencial. A periferia passa a protagonizar os temas e assuntos jornalísticos e literários, concretizados pelo cotidiano dos bairros – Umarizal, Telégrafo, Jurunas, Guamá, Vila da Barca, isto é, a periferia passa, desta forma, a figurar, de modo privilegiado, na maioria dos textos literários produzidos. Eles subverteram o que estava instituído no modo de vida local, na literatura, na arte, nos comportamentos, o que abriu caminho para a tessitura literária de vozes da negritude, da gente da periferia e dos menos favorecidos pelo sistema econômico, político e social da capital do Pará.

Embora vista por alguns, como um grupo apenas folclórico, a academia exerceu grande influência sobre a imprensa da época, publicando crônicas e poemas em jornais locais.

A irreverência da APF não deve ser confundida com ausência de seriedade literária. Pelo contrário, o grupo soube usar o riso e a informalidade como forma de questionamento social e afirmação cultural, símbolo de uma literatura que brota das margens — dos rios, das feiras, das vozes populares — e que se recusa a ser subalterna aos grandes centros. Os meios de criação e ofício da escrita, sistematizados por esse grupo, tinham, como desfecho, a quebra dos padrões estéticos e tradicionais europeus (o que foi se dando lenta e gradualmente).

  O cognome Academia do PeixeFrito é uma expressão idealizada e cunhada por Dalcídio Jurandir, que, metaforicamente, pode-se entender como uma incessante busca pelo reconhecimento da literatura paraense em sua dimensão histórica, intelectual, identitária e cultural a partir de suas vivências na Amazônia, estendendo-as, quando possível, para o Brasil. 

Mesmo com toda a informalidade que a constituía, possuía códigos e normas que legitimavam o pertencimento de seus membros ao grupo. O modo de viver, suas tensões, diálogos e posições criaram identificações entre seus participantes, por vezes, diferenciando-os de outros grupos que circulavam pela cidade. Eles buscavam estabelecer e conferir suas formas de pensar e de viver. A vida noturna e a boemia poderiam ser suas formas de resistências e de transgressões, materializadas no usufruir da cidade, como disse Jaques Flores, nas “delícias dos prazeres humanos.”

Marcos Valério Reis
Marcos Valério Reis, graduado em Letras, especialista em Estudos Linguísticos e Literários, mestre e doutor em Comunicacão, Linguagens e Cultura, Pós doutor em Comunicacão e Teologia, é membro da Academia Paraense de Jornalismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará.

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